Euclides,
Geometria e Fundamentos
(Artigo
organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da
Rede Estadual de Ensino do Maranhão)
Introdução
A
preocupação com os fundamentos da Matemática remonta aos gregos da
antiguidade. E a obra conhecida como Os
Elementos
de Euclides é a primeira apresentação da Matemática com
pretensões – aliás, muito justificadas! – de ser rigorosamente
fundamentada. Falemos um pouco sobre Euclides e os Elementos.
Os Elementos
de Euclides
Temos pouca
informação sobre Euclides, que teria vivido por volta do ano 300
a.C. E esse pouco que dele sabemos nos vem dos comentários de
Proclus (410-485), um autor que viveu mais de 700 anos depois de
Euclides. Mesmo Proclus tem dificuldade em determinar a época em que
viveu Euclides.
Euclides
escreveu várias obras científicas. A mais famosa das quais,
conhecida com o nome de Elementos,
reúne quase todo o conhecimento matemático daquele tempo. Em parte
por causa disso, e também por tratar-se de uma obra de escola, que
reunia a maior parte da Matemática então conhecida, as obras
anteriores aos Elementos
desapareceram. A única exceção são alguns fragmentos atribuídos
a Hipócrates
de Quio,
que viveu no século V a.C. Assim, Os
Elementos
de Euclides é praticamente tudo o que temos da Matemática grega,
que se desenvolveu desde seu início com Tales
de Mileto,
que viveu no século VI a.C., até o tempo de Euclides – um período
de cerca de 250 anos. Aliás, muito pouco tempo para que a
Matemática, logicamente organizada, evoluísse do estágio
embrionário em que se encontrava com Tales até o alto grau de
sofisticação que transparece em Os
Elementos.
Não
sabemos se Euclides escreveu Os
Elementos
para uso no ensino, ou apenas para reunir o conhecimento matemático
da época. Naquele tempo não havia a preocupação pedagógica dos
dias de hoje, de sorte que Euclides alcançou os dois objetivos; a
obra foi muito usada no aprendizado da Matemática por mais de dois
milênios. No século XIX já havia outros livros de Geometria,
didaticamente mais adequados ao ensino, notadamente o livro de
Legendre,
que teve muitas edições em várias línguas, inclusive no
português. Esse livro foi muito usado nas escolas brasileiras por
quase todo o século XIX.
Um
equívoco que se comete com frequência é pensar que Os
Elementos
é uma obra apenas sobre Geometria. Na verdade, há muito de
Aritmética e Álgebra em vários dos livros de Os
Elementos.
O que é verdade – e isso explica, pelo menos em parte, a origem do
equívoco – é que a Matemática grega, na época em que Euclides
compôs sua obra, era toda ela geometrizada. De fato, a crise dos
incomensuráveis e a genial solução que lhe deu Eudoxo,
aliada a uma excessiva preocupação com o rigor, encaminhou toda a
Matemática para o lado da Geometria. Isso se tornou tão arraigado
que até cerca de 100 anos atrás os matemáticos costumavam ser
chamados de “geômetras”.
Um
outro equívoco não menos frequente é pensar que os fatos
geométricos de Os
Elementos
sejam expressos numericamente como o são para nós hoje.
Para
exemplificar, enquanto para nós a área de um triângulo é dada por
uma fórmula, exprimindo metade do produto da base pela altura, para
Euclides a área de um triângulo é metade da área do paralelogramo
que se obtém com a junção de dois triângulos iguais ao triângulo
dado; a área do paralelogramo é igual à área de um retângulo de
mesma base e mesma altura, e assim por diante. Para nós, hoje, a
área de um círculo é πr2,
mas para Arquimedes
(287-212 a.C.), que viveu algumas décadas depois de Euclides, a área
do círculo é igual à área de um triângulo de base igual ao
comprimento da circunferência e altura igual ao raio do círculo.
Para nós o volume da esfera é 4πr3/3,
enquanto o que Arquimedes nos diz é que o volume da esfera está
para o volume do cilindro circular reto a ela circunscrito, assim
como 2 está para 3; e isso é informação suficiente.
Na Matemática
grega, antes e durante o período helenístico, não havia fórmulas
como as que conhecemos hoje; tudo era dado em termos de proporções,
como no caso do volume da esfera que acabamos de mencionar. E isso
perdurou no ocidente por mais um milênio após o declínio da
civilização helenística.
O conteúdo de
Os Elementos
Os
Elementos
são hoje uma obra antes de tudo de valor histórico. Sua melhor
versão é a tradução inglesa de Thomas
L. Heath
(que foi publicada pela Editora Dover em três volumes).
Isso porque Heath
enriqueceu sobremaneira a obra de Euclides com uma excelente
introdução, além de inúmeros, valiosos e esclarecedores
comentários.
O
volume I de Heath reúne os Livros I e II de Os
Elementos,
o primeiro destes contendo uma boa parte da geometria plana,
construções geométricas, teoremas de congruência, áreas de
polígonos e o teorema de Pitágoras (que é a Proposição 47).
Ainda no volume I de Heath encontra-se o Livro II de Os
Elementos,
sobre o que se costuma chamar de “Álgebra geométrica”. Por
exemplo, a Proposição 4 desse Livro II é o equivalente, em
linguagem geométrica, à propriedade que hoje conhecemos como
“quadrado da soma” (igual ao quadrado do primeiro, mais o
quadrado do segundo, mais duas vezes o primeiro vezes o segundo).
Euclides enuncia isso geometricamente assim: “Se
um segmento de reta é dividido em dois, o quadrado construído sobre
o segmento inteiro é igual aos quadrados construídos sobre os
segmentos parciais e duas vezes o retângulo construído com estes
segmentos”.
Euclides não fala, mas ele está se referindo a áreas, quando diz
“...
é igual...”.
O
volume II de Heath contém os Livros III a IX de Os
Elementos,
tratando do círculo (Livro III), construção de certos polígonos
regulares (Livro IV), teoria das proporções de Eudoxo (Livro V),
semelhança de figuras (Livro VI) e teoria dos números (Livros
VII-IX). Por exemplo, a Proposição 20 do Livro IX é o famoso
teorema: “existem
infinitos números primos”.
Mas Euclides não fala “infinitos”,
já que os gregos não admitiam o que Aristóteles chama de “infinito
atual”,
apenas o chamado “infinito
potencial”.
Em linguagem de hoje, Euclides diria mais ou menos isso: “Dado
qualquer conjunto (finito, entenda-se bem!) de números primos,
existe algum número primo fora desse conjunto”.
E a demonstração, novamente, é geométrica. Na opinião do
matemático inglês Godfrey
Harold Hardy
(1877-1947), trata-se de uma das mais belas demonstrações da
Matemática. Finalmente, o volume III de Heath contém os Livros
X-XIII, onde são tratados a incomensurabilidade, geometria espacial
e os poliedros regulares.
A Geometria
dedutiva
Foi
no início do século VI a.C. que Tales
de Mileto
inaugurou na Matemática a preocupação demonstrativa. A partir de
então a Matemática grega vai assumindo o aspecto de um corpo de
proposições logicamente ordenadas: cada proposição é demonstrada
a partir de proposições anteriores, essas a partir de outras
precedentes, e assim por diante, um processo que não teria fim. Mas
os gregos logo perceberam isso e viram que era necessário parar o
processo em certas proposições iniciais, consideradas evidentes por
si mesmas; com base nessas, todas as outras são demonstradas. As
proposições evidentes por si mesmas são hoje designadas,
indiferentemente, “postulados”
ou “axiomas”.
O aspecto mais importante de Os
Elementos
é essa organização dos fatos, num admirável encadeamento
lógico-dedutivo, em que um número reduzido de proposições e
definições iniciais são o bastante para se demonstrar, uns após
os outros, todos os teoremas considerados. Historicamente, Os
Elementos
de Euclides é a primeira corporificação desse “método
axiomático”,
do qual voltaremos a falar mais adiante.
As geometrias
não-euclidianas
Embora
muito admirado e aplaudido, o modelo axiomático de Os
Elementos,
no que se refere ao quinto postulado, ou postulado das paralelas,
suscitou questionamentos.
Já
na antiguidade vários matemáticos acreditavam que ele pudesse ser
demonstrado com base nos outros postulados e tentaram fazer tal
demonstração. Essas tentativas foram retomadas nos tempos modernos
pelo matemático italiano Girolamo
Saccheri
(1667-1733), que publicou, pouco antes de morrer, um opúsculo no
qual pretendia ter demonstrado o postulado pelo método de redução
ao absurdo. Assim, negando o postulado, ele demonstrou uma série de
teoremas, concluindo ter chegado a uma contradição. Mas, no fundo,
no fundo, não havia contradição nas conclusões de Saccheri,
embora isso só fosse notado muito mais tarde, quando Eugênio
Beltrami
(1835-1900) descobriu o trabalho de Saccheri.
Por
volta de 1830 já havia sérias suspeitas de que o postulado das
paralelas não pudesse ser demonstrado a partir dos outros.
Suspeitava-se que ele fosse independente dos outros quatro, e que se
pudesse desenvolver uma geometria a partir de negações do postulado
das paralelas, ao lado dos outros postulados de Euclides. Foi nessa
época que o matemático húngaro János
Bolyai
(1802-1860) e o russo Nicokolai
Ivanovich Lobachevsky
(1792-1856) publicaram, independentemente um do outro, a descoberta
de geometrias não-euclidianas, ou seja, geometrias que negam o
postulado das paralelas.
Mas as
publicações de Bolyai e Lobachevski não foram suficientes para
convencer o mundo matemático da possibilidade das geometrias
não-euclidianas. Esses trabalhos eram parecidos com o de Saccheri:
negavam o postulado das paralelas e desenvolviam uma série de
teoremas sem chegar a contradição alguma. Mas, e daí? Quem garante
que a contradição não está para aparecer logo no próximo teorema
que ainda não foi demonstrado? Quem garante que todos os teoremas já
foram enunciados e demonstrados? Aliás, foi somente após essas
questões terem sido levantadas, aliadas à conexão com as
tentativas de construir geometrias não-euclidianas, que os
matemáticos começaram a perceber que a própria Geometria de
Euclides também estava sujeita aos mesmos questionamentos.
Quem poderia
garantir que os cinco postulados de Euclides não poderiam levar a
uma contradição? Afinal, Euclides demonstrara apenas um número
finito de teoremas. Quem sabe a contradição apareceria no próximo
teorema, como alguém que, depois de tanto percorrer as areias de um
deserto à procura de um oásis, quando não mais acredita que ele
exista, pode – agora por felicidade e não desdita – encontrá-lo
do outro lado da próxima duna!...]
Foi Beltrami quem
primeiro exibiu um modelo de geometria não-euclidiana, que permitia
interpretar os fatos dessa geometria, em termos da própria geometria
euclidiana.
Outros
modelos foram construídos por Felix
Klein
(1849-1925) e Henri
Poincaré
(1854-1912). Esses modelos, como o de Beltrami, foram apoiados na
geometria euclidiana.
O método
axiomático
Foi
a partir de então – após esses vários matemáticos haverem
exibido modelos euclidianos das geometrias não-euclidianas – que
essas geometrias ganharam total credibilidade. Provava-se que elas
eram consistentes, isto é, livres de contradições internas. Mas
tais provas apoiavam-se na geometria euclidiana, de sorte que elas
tornavam ao mesmo tempo evidente a necessidade de provar a
consistência da própria Geometria de Euclides. Os matemáticos
começaram então a estudar a consistência dos postulados de
Euclides, e logo perceberam que eles eram insuficientes para provar
os teoremas conhecidos, sem falar nos demais que viessem a ser
considerados no futuro. Analisando os Elementos
desse novo ponto de vista, eles descobriram que a axiomática
euclidiana era muito incompleta e continha sérias falhas. Euclides,
em suas demonstrações, apelava para fatos alheios aos postulados.
Era necessário reorganizar a própria geometria euclidiana,
acrescentando, inclusive, os postulados que estavam faltando. Isso
foi feito por vários matemáticos no final do século XIX, dentre
eles David
Hilbert
(1862-1943), que, em 1889, publicou o livro Fundamentos
da Geometria,
no qual ele faz uma apresentação rigorosa de uma axiomática
adequada ao desenvolvimento lógico-dedutivo da geometria euclidiana.
Os Fundamentos
da Matemática
Paralelamente ao
que acontecia em Geometria, as preocupações com o rigor se faziam
presentes também na Análise Matemática, a partir de
aproximadamente 1815. Os desenvolvimentos que vinham ocorrendo na
Geometria, na Álgebra e na Análise durante todo o século XIX
convergiram, no final do século, para uma preocupação com os
fundamentos de toda a Matemática. Por duas razões importantes, os
matemáticos acabaram se convencendo de que todas as teorias
matemáticas teriam de se fundamentar, em última instância, nos
números naturais.
De um lado, os
números complexos, os números reais, os racionais e os inteiros
puderam ser construídos, de maneira lógica e consistente, uns após
outros, começando nos números naturais. De outro lado, Hilbert
estabelecera uma correspondência entre os elementos geométricos do
plano – pontos, retas e círculos – com os entes numéricos da
geometria analítica. Os pontos podem ser caracterizados por pares
ordenados de números reais, e as retas e círculos por suas
equações. Isso permitiu reduzir o problema da consistência da
Geometria à consistência da Aritmética. Provando se a consistência
desta, ficaria também provada a da Geometria. Assim, a Geometria,
que desde a antiguidade era considerada o modelo de rigor lógico,
estava agora dependendo da própria Aritmética para sua efetiva
fundamentação.
Leopold
Kronecker
(1823-1891) dizia que Deus nos deu os números naturais e que o resto
é obra do homem. Com isso ele queria dizer que esses números
deveriam ser tomados como o ponto de partida, o fundamento último de
toda a Matemática. Não obstante, Richard
Dedekind
(1831-1916) mostrou ser possível construir os números naturais a
partir da noção de conjunto, noção essa que seria mais
extensamente desenvolvida por Georg
Cantor
(1845-1918).
A
possibilidade de construir toda a Matemática a partir da teoria dos
conjuntos intensificou o interesse por esse campo de estudos. Porém,
esses estudos estavam ainda incipientes e os matemáticos já
começavam a encontrar sérias contradições internas na teoria.
Muitas dessas contradições foram resolvidas, até que, em 1931, o
lógico austríaco Kurt
Gödel
(1906-1978) surpreendeu o mundo matemático com a publicação de um
trabalho em que demonstrava que o método axiomático tem inevitáveis
limitações, que impedem mesmo a possibilidade de construir um
sistema axiomático, abrangendo a Aritmética.
Para bem entender
o que isso significa, devemos lembrar que um sistema axiomático deve
satisfazer as três condições seguintes: ser consistente, quer
dizer, os postulados não podem contradizer uns aos outros, por si
mesmos ou por suas consequências; deve ser completo, no sentido de
os postulados serem suficientes para provar verdadeiras ou falsas
todas as proposições formuladas no contexto da teoria em questão;
e, por fim, cada postulado deve ser independente dos demais, no
sentido de que não é consequência deles, sob pena de ser
supérfluo.
Pois bem, Gödel
prova, dentre outras coisas, que a consistência de qualquer sistema
matemático que englobe a Aritmética não pode ser estabelecido
pelos princípios lógicos usuais. Isso ele prova como consequência
deste seu outro resultado, conhecido como o teorema da incompletude:
se uma teoria formal que abrange a Aritmética for consistente, ela
necessariamente será incompleta, o que significa dizer que haverá
alguma proposição sobre os inteiros que a teoria será incapaz de
decidir se verdadeira ou falsa.
Seria
errôneo pensar que os estudos de Fundamentos
terminam com os resultados de Gödel, ou que esses resultados, pelos
seus aspectos negativos, condenam a Matemática a uma posição
inferior no contexto do conhecimento humano. O resultado de Gödel
certamente mostra que é falsa a expectativa acalentada desde a
antiguidade de que o conhecimento matemático, com seu caráter de
certeza absoluta, possa ser circunscrito nos limites permitidos por
um sistema axiomático. Além de revelar as limitações do método
axiomático, os resultados de Gödel mostram, isto sim, que as
verdades matemáticas, na sua totalidade, escapam aos figurinos
formais dos sistemas axiomáticos.
Hermann
Weyl
(1885-1955), que está entre os maiores matemáticos do século XX,
disse, espirituosamente: Deus
existe porque certamente a Matemática é consistente; e o demônio
existe porque somos incapazes de provar essa consistência.
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