Uma entrevista
virtual sobre o ensino da Matemática
(Entrevista
selecionada por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da
Rede Estadual de Ensino do Maranhão)
Um
estudo feito pelo Ministério da Educação mostra que o ensino de
Matemática nas escolas brasileiras foi o que pior desempenho teve
entre todas as matérias do currículo normal nos últimos anos.
Por
conta disso, o professor Elon Lages Lima foi entrevistado pelo Jornal
do Brasil e (duas vezes) pela TV Educativa do Rio de Janeiro. No que
segue, ele tenta resumir algumas coisas que disse naquelas ocasiões,
ou que pensa ter dito, ou que deveria ter dito. Pouco importa se o
registro não é exato. Estas são as opiniões dele, hoje como
ontem.
P.
são as perguntas feitas e R.
são as respostas do professor Elon.
P.
Por que o ensino da Matemática vai tão mal?
R.
Todo
o ensino vai mal.
P.
Mas o da Matemática vai pior.
R.
Entre
muitas coisas más, uma delas é sempre pior do que as outras.
P.
Há algum motivo para a Matemática ir pior?
R.
Há
vários.
P.
Um dos motivos seria o fato de a Matemática ser mais difícil?
R.
Não.
Qualquer criança cuja capacidade mental lhe permita aprender a ler e
escrever é também capaz de aprender a Matemática que se ensina da
1ª à 4ª série. Mais geralmente, todas as matérias que se ensinam
no Ensino Fundamental apresentam essencialmente o mesmo grau de
dificuldade e nenhuma delas exige pendores, habilidades ou talentos
especiais para aprendê-la.
P.
Então todo jovem normal é, em principio, capaz de aprender toda a
Matemática que deve ser ensinada até a 8ª (9ª) série?
R.
Absolutamente,
sim. Sem dúvida.
P.
E isso, de fato, acontece?
R.
No
Brasil, não. Noutros países (como, por exemplo, o Japão), sim.
P.
Isso quer dizer que os jovens desses países são mais inteligentes
do que os nossos?
R.
De
maneira nenhuma. Nem mais nem menos. Há, por exemplo, brasileiros de
descendência japonesa em número suficiente para vermos que não é
assim.
P.
Você disse que são vários os motivos para o baixo rendimento no
ensino da Matemática. Quais são eles?
R.
Antes
disso, eu havia dito que todo o ensino vai mal. Por isso acho melhor
começar por aí. Os países ricos, aqueles onde o povo tem uma vida
mais confortável, são precisamente aqueles em que as pessoas têm
acesso a uma educação de melhor qualidade. Isso significa escolas
bem equipadas e professores competentes. Esse quadro resulta da
conscientização, arraigada na cultura nacional, de que a educação,
além de ser a única porta para o bem-estar, é um direito do
cidadão e um dever do Estado.
P.
Como poderíamos esperar professores competentes no Brasil, com
salários tão baixos?
R.
Os
salários dos professores brasileiros que atuam no primeiro e segundo
graus são simplesmente vergonhosos. Humilhantes. Por isso as escolas
têm tanta dificuldade para recrutar professores capazes e os cursos
de licenciatura estão vazios. Entretanto, os baixos salários não
são, em si, a causa primordial do problema. São antes uma
consequência de não ter o nosso povo a noção exata do valor da
educação e daí seus representantes eleitos padecerem do mesmo mal.
Se houvesse entre nós a conscientização a que me referi acima,
haveria o reconhecimento da importância dos professores e isso se
refletiria nos seus salários, como ocorre nos países civilizados.
P.
Podemos agora focalizar a Matemática?
R.
Sim.
Ao contrário das demais matérias que se estudam na escola, que se
referem a objetos e situações concretas, a Matemática trata de
noções e verdades de natureza abstrata. Aliás, essa é uma das
razões da sua força e sua importância. A afirmação 2 x 5 = 10
tanto se aplica aos dedos de duas mãos quanto aos jogadores que
disputam um jogo de basquete. A generalidade com que valem as
proposições matemáticas exige precisão, proíbe ambiguidades e
por isso requer mais concentração e cuidado por parte do estudante.
Por outro lado, o exercício dessas virtudes durante os anos de
escola ajuda a formar hábitos que serão úteis no futuro. A
perseverança, a dedicação e a ordem no trabalho são qualidades
indispensáveis para o estudo da Matemática. Note-se que não se
trata de talentos e que não se nasce dotado delas.
P.
Então, afinal de contas, a Matemática é mais difícil?
R.
Se
o fato de exigir empenho, atenção e ordem significasse ser mais
difícil, a resposta (relutante) seria sim. As ideias e regras
matemáticas no nível que estamos considerando são, porém, todas
extremamente simples e claras, bem mais simples e claras, por
exemplo, do que as regras da crase (ou mesmo do que a lei do
impedimento no futebol). Por isso, continuo afirmando que toda pessoa
de inteligência média, sem talentos ou pendores especiais, pode
aprender toda a Matemática do Ensino Fundamental, desde que esteja
disposta a trabalhar e tenha uma orientação adequada. Aqui já vão
dois dos motivos que você me pediu para o mau resultado no ensino da
Matemática: pouca dedicação aos estudos por parte dos alunos (e da
sociedade que os cerca, a começar pela própria família) e
despreparo dos seus professores nas escolas que frequentam.
P.
Ainda há outros?
R.
Não
se esqueça do motivo primordial, a que aludi acima: a falta de um
reconhecimento nacional de que sem educação não há progresso e o
consequente descaso oficial pelo sistema escolar. Mas há outros,
sim. O conhecimento matemático é, por natureza, encadeado e
cumulativo. Um aluno pode, por exemplo, saber praticamente tudo sobre
a proclamação da república brasileira e ignorar completamente as
capitanias hereditárias. Mas não será capaz de estudar
Trigonometria se não conhecer os fundamentos da Álgebra, nem
entenderá essa última se não souber as operações aritméticas,
etc. Esse aspecto de dependência acumulada dos assuntos matemáticos
leva a uma sequência necessária, que torna difícil pegar o bonde
andando e muitas vezes provoca uma síndrome conhecida como
“ansiedade matemática”.
P.
Que é isso?
R.
É
o medo que algumas pessoas têm da Matemática. No passado ele era
repartido com o medo do Latim, mas este foi abolido, juntamente com
quase tudo que requeria trabalho no currículo escolar. Restou a
Matemática, mas as pessoas costumam disfarçar sua ansiedade
matemática com um aparente (e curioso) orgulho que as leva a
vangloriarem-se de que são péssimas nessa matéria, que sempre a
detestaram, etc. É engraçado que muitas dessas pessoas escrevem
mal, mas não admitem isso. Ninguém se orgulha de dizer que escreve
chuva com “x”, que não emprega corretamente a crase ou que diz
“aluga-se bicicletas”.
P.
Qual é a origem da ansiedade matemática?
R.
São
várias. Uma das mais frequentes é a tentativa de aprender um
assunto sem estar preparado para ele. Outra é passar os anos
escolares nas mãos de professores incapazes, que muitas vezes usam a
arrogância, a ironia e a humilhação como disfarces para sua
ignorância e com isso provocam aversão à matéria que deviam
ensinar. Há também a mera preguiça de pensar.
P.
Aos poucos você vai revelando os motivos para o pouco êxito no
ensino da Matemática: Em primeiro lugar, o sentimento de que a
educação é o caminho para o bem-estar não é suficientemente
forte no espírito do nosso povo. Esse é o motivo fundamental, no
seu entendimento. Os demais são: (1º) A Matemática, por ser exata,
requer atenção, cuidado e ordem. (2º) O conhecimento matemático é
cumulativo; cada passo precisa dos anteriores. (3º) Raramente a
Matemática é bem ensinada. Você tem alguma proposta para melhorar
esse estado de coisas?
R.
Quanto
ao motivo primordial, ele tem a ver com o amor-próprio nacional. Em
1806, depois da batalha de Jena, onde o exército prussiano teve seu
orgulho esmagado por Napoleão, os alemães concluíram que
desenvolvimento (e, em última análise, força) depende
substancialmente de educação. E processaram uma reforma radical. O
sistema educacional tornou-se central na sociedade. As universidades
foram modificadas e os professores secundários ganharam alto
prestígio social. O progresso do país, a partir daí, foi notável.
Exemplos mais recentes de ressurgimento das cinzas com base na
educação podem ser vistos no Japão e na Coréia. No nosso caso,
que se pode fazer? Talvez gritarmos bem alto: “Brasileiros, criem
vergonha na cara!”.
Quanto às
peculiaridades da Matemática, ela é importante porque é exata,
geral e se ocupa das noções mais básicas da vida humana: número e
espaço. Deixemo-la assim e amemo-la por isso.
Finalmente, quanto
ao ensino, não há mistério nem milagre. O bom professor é aquele
que vibra com a matéria que ensina, conhece muito bem o assunto e
tem um desejo autêntico de transmitir esse conhecimento, portanto se
interessa pelas dificuldades de seus alunos e procura colocar-se no
lugar deles, entender seus problemas e ajudar a resolvê-los. Não há
fórmulas mágicas para ensinar Matemática. Não há caminhos reais,
como Euclides já dizia a Ptolomeu. A única saída é o esforço
honesto e o trabalho persistente. Não só para aprender Matemática,
mas para tudo na vida.
P.
Devo entender que você não tem proposta a fazer?
R.
Pelo
contrário, tenho algumas.
Diante
do exposto, a única ação viável deve ser dirigida ao professor,
visando melhorar a qualidade do seu trabalho. O problema é bem menor
nas escolas particulares, onde é possível manter os bons
professores melhorando seus salários e se livrar dos piores
demitindo-os (é possível, mas nem sempre isso é feito). Na escola
pública, que abriga a vasta maioria dos alunos (e que deveria
abrigar todos), a situação é mais complicada. Aumentar
simplesmente os salários nada resolve porque a qualidade dos
professores que nela trabalham não vai melhorar por isso. Se o
problema do professorado consiste em mau preparo e baixos salários,
as duas coisas devem atacadas simultaneamente.
Penso
que deveria haver todo ano um exame nacional para habilitação de
professores, feito em três níveis: 1ª a 4ª séries, 5ª a 8ª
(9ª) e Ensino Médio.
Penso
que deveria haver uma tabela salarial especial para professores
aprovados nesse exame.
Penso
que o ensino até a 8ª (9ª) série deveria ser obrigatório, com o
mesmo currículo para todos os estados do país.
Penso
que o poder público deveria instituir programas de capacitação, a
fim de preparar os professores para os exames de habilitação.
Penso
que o Ensino Médio deve continuar sendo bifurcado, não em clássico
ou cientifico, como era antigamente, mas em acadêmico e
profissional, devendo este último preparar diretamente o jovem para
o mercado de trabalho.
Estas
são, em resumo, as propostas do professor Elon.
[Contato:
macolins@gmail.com]