Conceituação,
manipulação, aplicações
(As
três componentes do ensino da Matemática)
(Artigo
organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da
Rede Estadual de Ensino do Maranhão)
Introdução
Quando
se pensa em ensinar Matemática, dois aspectos que se complementam
precisam ser considerados separadamente. Poderíamos chamá-los o
global e o local, o genérico e o específico, o macro e o micro, a
estratégia e a tática, o planejamento e a execução, a estrutura
do curso e a didática das aulas.
De
didática não trataremos aqui. Em vez disso, diremos como o ensino
da Matemática deve ser organizado levando em conta a natureza
peculiar desta matéria, os alunos aos quais ela se destina e os
motivos de sua inclusão no currículo.
A
fim de familiarizar gradativamente os alunos com o método
matemático, dotá-los de habilidades para lidar desembaraçadamente
com os mecanismos do cálculo e dar-lhes condições para mais tarde
saberem utilizar seus conhecimentos em situações da vida real, o
ensino da Matemática deve abranger três componentes fundamentais,
que chamaremos de Conceituação,
Manipulação e Aplicações.
Da
dosagem adequada de cada uma dessas três componentes depende o
equilíbrio do processo de aprendizagem, o interesse dos alunos e a
capacidade que terão para empregar futuramente, não apenas as
técnicas aprendidas nas aulas, mas sobretudo o discernimento, a
clareza das ideias, o hábito de pensar e agir ordenadamente,
virtudes que são desenvolvidas quando o ensino respeita o
balanceamento das três componentes básicas. Elas devem ser pensadas
como um tripé de sustentação: as três são suficientes para
assegurar a harmonia do curso e cada uma delas é necessária para o
seu bom êxito.
Conceituação
A
conceituação
compreende
a formulação correta e objetiva das definições matemáticas, o
enunciado preciso das proposições, a prática do raciocínio
dedutivo, a nítida conscientização de que conclusões sempre são
provenientes de hipóteses que se admitem, a distinção entre uma
afirmação e sua recíproca, o estabelecimento de conexões entre
conceitos diversos, bem como a interpretação e a reformulação de
ideias e fatos sob diferentes formas e termos. É importante ter em
mente e destacar que a conceituação é indispensável para o bom
resultado das aplicações.
Manipulação
A
manipulação,
de
caráter principalmente (mas não exclusivamente) algébrico, está
para o ensino e o aprendizado da Matemática assim como a prática
dos exercícios e escalas musicais está para a música (ou mesmo
como o repetido treinamento dos chamados “fundamentos” está para
certos esportes, como o tênis e o voleibol). A habilidade e a
destreza no manuseio de equações, fórmulas e construções
geométricas elementares, o desenvolvimento de atitudes mentais
automáticas, verdadeiros reflexos condicionados, permite ao usuário
da Matemática concentrar sua atenção consciente nos pontos
realmente cruciais, poupando-lhe da perda de tempo e energia com
detalhes secundários.
Aplicações
As
aplicações
são
empregos das noções e teorias da Matemática para obter resultados,
conclusões e previsões em situações que vão desde problemas
triviais do dia-a-dia a questões mais sutis que surgem noutras
áreas, quer científicas, quer tecnológicas, quer mesmo sociais. As
aplicações constituem a principal razão pela qual o ensino da
Matemática é tão difundido e necessário, desde os primórdios da
civilização até os dias de hoje e certamente cada vez mais no
futuro. Como as entendemos, as aplicações do conhecimento
matemático incluem a resolução de problemas, essa arte intrigante
que, por meio de desafios, desenvolve a criatividade, nutre a
auto-estima, estimula a imaginação e recompensa o esforço de
aprender.
Matemática
Moderna (excesso de conceituação)
Durante
o período da chamada Matemática Moderna (décadas de 60 e 70),
ocorreu no ensino uma forte predominância da conceituação em
detrimento das outras duas componentes. Quase não havia lugar para
as manipulações e muito menos para as aplicações. Por um lado, a
Matemática que então se estudava nas escolas era pouco mais do que
um vago e inútil exercício de generalidades, incapaz de suprir as
necessidades das demais disciplinas científicas e mesmo do uso
prático no dia-a-dia. Por outro lado, como os professores e autores
de livros didáticos não alcançavam a razão de ser e o emprego
posterior das noções abstratas que tinham de expor, o ensino perdia
muito em objetividade, insistindo em detalhes irrelevantes e deixando
de destacar o essencial.
O
conceito de função
Um
exemplo flagrante da falta de objetividade (que persiste até hoje em
quase todos os livros didáticos brasileiros) é a definição de
função como um conjunto de pares ordenados. Função é um dos
conceitos fundamentais da Matemática (o outro é conjunto). Os
usuários da Matemática e os próprios matemáticos costumam pensar
numa função de modo dinâmico, em contraste com essa concepção
estática. Uma transformação geométrica é uma função. Mas não
é provável que exista alguém que imagine uma rotação, por
exemplo, como um conjunto de pares ordenados. Os próprios autores e
professores que apresentam essa definição não a adotam depois,
quando tratam de funções específicas como as logarítmicas,
trigonométricas, etc. Quem pensa num polinômio como um subconjunto
de R2?
Para
um matemático, ou um usuário da Matemática, uma função f
: X → Y,
cujo domínio é o conjunto X
e contradomínio o conjunto Y,
é
uma correspondência (isto é, uma regra, um critério, um algoritmo
ou uma série de instruções) que estabelece, sem exceções nem
ambiguidade, para cada elemento x
em X,
sua imagem f(x)
em Y.
Um purista pode objetar que correspondência, regra, etc são termos
sem significado matemático. A mesma objeção, entretanto, cabe na
definição de função como conjunto de pares ordenados pois, para
termos um conjunto, necessitamos de uma regra, um critério, uma
série de instruções que nos digam se um dado elemento pertence ou
não ao conjunto. Além do mais, a definição de função como uma
correspondência é muito mais simples, mais intuitiva e mais
acessível ao entendimento do que a outra, que usa uma série de
conceitos preliminares, como produto cartesiano, relação binária,
etc. Por isso mesmo ela é utilizada por todos, exceto os autores de
livros didáticos brasileiros.
Manipulação
demais
A
manipulação é, das três, a componente mais difundida nos
livros-texto adotados em nossas escolas. Consequentemente, abundam
nas salas de aula, nas listas de exercícios e nos exames as
operações com elaboradas frações numéricas ou algébricas, os
cálculos de radicais, as equações com uma ou mais incógnitas, as
identidades trigonométricas e vários outros tipos de equações
que, embora necessárias para o adestramento dos alunos, não são
motivadas, não provêm de problemas reais, não estão relacionadas
com a vida atual, nem com as demais ciências e nem mesmo com outras
áreas da Matemática.
A
presença da manipulação é tão marcante em nosso ensino que, para
o público em geral (e até mesmo para muitos professores e alunos),
é como se a Matemática se resumisse a ela. Isto tem bastante a ver
com o fato de que o manuseio eficiente de expressões numéricas e
símbolos algébricos impõe a formação de hábitos mentais de
atenção, ordem e exatidão, porém não exige criatividade,
imaginação ou capacidade de raciocinar abstratamente.
O
método peremptório
Intimamente
ligado ao costume de privilegiar a manipulação formal no ensino da
Matemática está a apresentação da Geometria segundo o que
chamaremos de método peremptório. Este método consiste em declarar
verdadeiras certas afirmações, sem justificá-las. Um dos maiores
méritos educativos da Matemática é o de ensinar aos jovens que
toda conclusão se baseia em hipóteses, as quais precisam ser
aceitas, admitidas para que a afirmação final seja válida. O
processo de passar, mediante argumentos logicamente convincentes, das
hipóteses para a conclusão chama-se demonstração e seu uso
sistemático na apresentação de uma teoria constitui o método
dedutivo. Este é o método matemático por excelência e a Geometria
Elementar tem sido, desde a remota antiguidade, o lugar onde melhor
se pode começar a praticá-lo. Lamentavelmente, a grande maioria dos
estudantes brasileiros sai da escola, depois de onze anos de estudo,
sem jamais ter visto uma demonstração. O método peremptório de
ensinar Geometria enfatiza as relações métricas, ignora as
construções com régua e compasso e reduz todos os problemas a
manipulações numéricas.
O
que se deve demonstrar
Evidentemente
as demonstrações pertencem à componente Conceituação. Elas devem
ser apresentadas por serem parte essencial da natureza da Matemática
e por seu valor educativo. A nível escolar, demonstrar é uma forma
de convencer com base na razão, em vez da autoridade. Por este
motivo, não se deve demonstrar o que é intuitivamente evidente, o
que todos aceitam sem hesitação. (Exemplo: que uma reta tem no
máximo dois pontos em comum com uma circunferência dada.) Se
demonstrar é uma forma de convencer por meio da razão, para que
perder tempo provando algo do qual todos já estão convencidos?
Também não se devem provar resultados que, embora não sejam de
forma alguma óbvios, necessitam, para serem demonstrados, de
argumentos e técnicas difíceis, fora do alcance dos alunos, como o
Teorema Fundamental da Álgebra, segundo o qual todo polinômio de
grau n possui n raízes complexas. Por outro lado, certos fatos
matemáticos não são intuitivamente evidentes, mas possuem
demonstrações fáceis e elegantes. Sem dúvida, o exemplo mais
conhecido é o Teorema de Pitágoras, do qual devem ser dadas pelo
menos duas das inúmeras demonstrações conhecidas.
Aplicações
adequadas
As
aplicações constituem para muitos alunos de nossas escolas, a parte
mais atraente (ou menos cansativa) da Matemática que estudam. Se
forem formuladas adequadamente, em termos realísticos, ligados a
questões e fatos da vida atual, elas podem justificar o estudo, por
vezes árido, de conceitos e manipulações, despertando o interesse
da classe. Encontrar aplicações significativas para a matéria que
está expondo é um desafio e deveria ser uma preocupação constante
do professor. Elas devem fazer parte das aulas, ocorrer em muitos
exercícios e ser objetos de trabalho em grupo.
Cada
novo capítulo do curso deveria começar com um problema cuja solução
requeresse o uso da matéria que vai começar a ser ensinada. É
muito importante que o enunciado do problema não contenha palavras
que digam respeito ao assunto que vai ser estudado naquele capítulo.
De resto, as aplicações mais interessantes, durante todo o curso,
são os exemplos e exercícios cujo objeto principal não é o
assunto que está sendo tratado. Por exemplo: problemas sobre
logaritmos onde a palavra “logaritmo” não ocorra no enunciado ou
exercícios que se resolvam com trigonometria, mas que não falem em
seno, cosseno, etc. Para resolver problemas dessa natureza é preciso
estar bem familiarizado com a conceituação dos objetos matemáticos
(além, naturalmente, de saber fazer as contas pertinentes). Por isso
é que dissemos no início que a conceituação é fundamental nas
aplicações.
A
falta de aplicações para os temas estudados em classe é o defeito
mais gritante do ensino da Matemática em todas as séries escolares.
Ele não poderá ser sanado sem que a conceituação seja bem
reforçada. Para resolver um simples probleminha, o aluno da escola
primária hesita se deve multiplicar, somar ou dividir os dois
números que são dados. Para decidir, ele precisa saber conceituar
adequadamente essas operações. Analogamente, o aluno do Ensino
Médio, diante de um certo problema proposto, não sabe se deverá
modelar a situação com uma função afim, quadrática ou
exponencial. (Problemas da vida não aparecem acompanhados de
fórmulas!). É preciso que ele conheça as propriedades dessas
funções a fim de tomar sua decisão. E assim por diante.
O
professor dedicado deve procurar organizar seu curso de modo a obter
o equilíbrio entre as três componentes fundamentais. Assim
procedendo, terá dado um largo passo na direção do êxito na sua
missão de educar.
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Nota:
“Uma
vez que a missão de todo professor é educar (e por que não dizer,
orientar bem) os seus alunos, este texto é um excelente convite a
reflexões acerca do importante papel que os professores desempenham
na sociedade. De resto, o texto fala por si e dispensa comentários
adicionais.”
(Marcos Antônio
Colins)
[Contato:
macolins@gmail.com]
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