A Matemática
no Ensino Fundamental
(Artigo
organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da
Rede Estadual de Ensino do Maranhão)
“Quando
se fala em Matemática e em Educação matemática no Brasil, o nome
de Elon Lages Lima aparece sempre à cabeça de uma lista de ilustres
que deram, nas últimas décadas, um novo impulso à Matemática
brasileira.”
(Nuno
Crato, jornalista, escritor e matemático, ao entrevistar o professor
Elon Lages Lima. Entrevista publicada em novembro de 2001, na Revista
do seminário Expresso, de Lisboa.)
Todos
os que se ocupam de Matemática, ou que a ela foram alguma vez
submetidos, conhecem o caráter fortemente cumulativo dessa matéria:
cada passo depende de modo essencial dos anteriores. Assim, é
natural que os primeiros anos do treinamento matemático tenham uma
importância fundamental no desempenho do aluno em seus estudos
posteriores. Em particular, se queremos analisar os problemas
relativos ao ensino da Matemática, é indispensável começar pelo
Ensino Fundamental.
Antes
de tudo, é preciso deixar bem claro que a Matemática se ocupa
primordialmente de dois tipos de objetos: números e espaço (figuras
geométricas). Por se ocupar de ideias básicas e fundamentais como
estas é que a Matemática tem uma importância tão grande no
currículo escolar e, mais geralmente, na construção da sociedade
civilizada.
Durante
os quatro primeiros anos de escola, o aluno precisa ganhar
familiaridade com os números, sua escrita, sua nomenclatura, as
operações entre eles, as noções de fração e número decimal e
as aplicações mais simples desses conceitos a problemas cotidianos.
Deve também aprender a trabalhar com as figuras geométricas mais
simples (planas ou espaciais) e a estabelecer conexões entre números
e figuras, medindo comprimentos, ângulos, áreas e volumes. Deve
ganhar experiência com as diversas unidades de medida que compõem o
sistema métrico.
O
conteúdo básico da Matemática dos primeiros quatro anos da escola
não difere muito do que nós, nossos pais e mesmo nossos avós
aprenderam. A diferença, se existe, deve estar na compreensão de
que certos exageros, ranços, hábitos arraigados, tradições
injustificáveis e uma grande quantidade de entulho acumulado durante
os séculos em que a rotina predominou nas salas de aula, todos esses
excessos devem dar lugar a uma atitude mais equilibrada, que combine
a necessária aquisição de úteis e eficazes reflexos condicionados
com o desenvolvimento do raciocínio e a exposição do aluno a
situações concretas e desafiadoras, que motivem e ilustrem o
emprego dos conceitos essenciais que é obrigado a, e não pode
eximir-se de, aprender.
Em
suma:
nos quatro primeiros anos de escola, a criança deve aprender a
efetuar com destreza as operações fundamentais com inteiros,
frações e números decimais, deve aprender a utilizar estas
habilidades na solução de problemas concretos e atraentes, deve
familiarizar-se com as figuras geométricas (planas e espaciais) mais
simples, deve aprender a calcular comprimentos, áreas e volumes, bem
como utilizar as unidades do sistema métrico decimal.
Tudo
isto é muito claro e tem milênios de uso e experiência para
justificar sua importância e orientar seu ensino.
No
entanto, há dificuldades para a execução desse programa.
Procuremos identificá-las.
Os
personagens principais da ação ensino-aprendizagem são dois: o
aluno e o professor. Da primeira à quarta série, quase sempre são
o aluno e a professora.
Quanto
ao aluno deve ficar entendido que não são necessários talentos
especiais nem inteligência excepcional para aprender a Matemática
que se ensina nas quatro, ou mesmo nas nove, primeiras séries da
escola. Qualquer criança cuja capacidade mental lhe permita aprender
a ler e escrever é também capaz de aprender a Matemática que se
ensina da primeira à quarta série da escola.
Mais
ainda: todas as matérias lecionadas nos nove anos do Ensino
Fundamental apresentam essencialmente o mesmo grau de dificuldade e
nenhuma delas exige habilidades ou pendores especiais para
aprendê-las. O que provavelmente a Matemática requer um pouco mais
do que as outras matérias é concentração, cuidado, atenção e
ordem no trabalho. Mas estas virtudes, que a Matemática ajuda a
desenvolver, são parte integrante de uma educação bem orientada e
não se nasce com elas: o lar e a escola são os lugares onde as
aprendemos.
Quanto
à professora, aí está a parte crucial do problema.
No
Brasil, com raríssimas exceções, as professoras que se ocupam das
quatro primeiras séries não possuem curso superior. Muitas delas
sequer concluíram o Ensino Médio. Tendo que ensinar várias
matérias numa determinada série, seus conhecimentos matemáticos e
sua experiência são extremamente limitados. Nas escolas, quando
alunas, lhes ensinaram pouco e aprenderam ainda menos. Para organizar
suas aulas, valem-se de livros-texto, nos quais são obrigadas a crer
pois não têm outra opção. Esses livros, que geralmente procuram
seguir as tendências dominantes no momento em que foram escritos,
lembram modelitos fabricados pela costureira do bairro, tentando
copiar os estilistas de Paris e Milão. A cada década muda a ênfase.
Primeiro
veio a Matemática Moderna, enchendo os textos com diagramas de Venn,
gráficos de relações e a mensagem de que “abstrato é bom,
concreto é ruim; geral é moderno, particular é antiquado.”
Depois ocorreu a onda do “problem solving”, mais difícil de
seguir porque exigia muita imaginação e criatividade, além de
conter em si uma espécie de contradição: se a resolução de
problemas é uma forma de fugir à rotina, catalogá-los e apresentar
técnicas para resolver cada tipo-padrão constitui também uma
rotina. No momento, temos o que se poderia chamar “reform
Mathematics”, com uma série de dogmas onde predominam o
construtivismo e o uso de alta tecnologia em sala de aula.
O
curioso é que cada uma dessas ondas tem origem num ponto válido.
Ocorre, porém, que seus zelosos divulgadores, aqueles que sempre
aparecem como arautos da verdade absoluta, esticam esses pontos de
forma dogmática e abrangente, negando inclusive as ondas anteriores,
que muitos deles ardorosamente defenderam na época. E assumem
posições radicais, propondo métodos e atitudes impraticáveis no
dia-a-dia da sala de aula, apregoando exageros inadmissíveis.
Os que
aderem a essas marés de fé frequentemente esquecem de exercer a
salutar prática da autocrítica. Um exemplo recente pode ser visto
na versão preliminar de um documento oficial, onde se lê que “a
necessidade de se lidar com frações na vida quotidiana limita-se
praticamente a metade,
terços
e quartos
e isto se dá, quase exclusivamente, pela linguagem oral”.
Esta
afirmação irresponsável tem, provavelmente, a seguinte origem:
alguém (corretamente) observou que na escola devia-se ensinar melhor
o uso de decimais em vez de insistir em trabalhosas operações
envolvendo enormes frações ordinárias. O mau entendedor, ignorando
as práticas universais da Matemática e distorcendo os usos diários
da sociedade, achou que tal observação implicava no banimento das
frações e emitiu a asneira acima citada.
Vejamos
outro exemplo. No ensino tradicional, em que a geração dos nossos
antepassados foi formada, havia uma predominância excessiva da
memorização de tabelas, regras e fórmulas. Em seu formato mais
estereotipado, aquele ensino dava pouca ou nenhuma importância à
conceituação, ao raciocínio e à discussão das ideias.
Consideremos, digamos, a igualdade 7 ×
9 = 63. O aluno tinha que sabê-la de cor, recitá-la
automaticamente, junto com centenas de outros resultados, quase
sempre sem refletir sobre o significado da operação 7 ×
9. Os educadores sensatos, corretamente, insistem no fato de que é
necessário compreender o que quer dizer 7 ×
9, pois do contrário o conhecimento daquela igualdade não teria
aplicabilidade.
Esta
mensagem de elementar bom senso é retransmitida por muitos dos
chamados educadores de forma deturpada, investindo contra a
memorização de resultados matemáticos, exigindo que eles sejam
“entendidos” como se me fosse necessário (ou mesmo possível)
entender o número do meu telefone. É obviamente importante entender
os significados de 7 ×
9 e 10 + 8, por exemplo. Sem esta compreensão não se podem utilizar
as operações aritméticas em problemas concretos. Mas não tem
cabimento tentar entender por que 7 ×
9 = 63 e por que 10 + 8 = 18. Sessenta e três e dezoito são os
nomes dos números que resultam da multiplicação de sete por nove e
da adição de dez com oito. Só isso. Não há nada a entender. O
que deve ser entendido é que memorizar e compreender são tarefas
complementares e não antagônicas. Ambas são extremamente
importantes, como importante é o discernimento dos casos em que se
usam as duas ou apenas uma (e qual) delas.
Conforme
dito anteriormente, do 5o
ao 9o
ano do Ensino Fundamental o sistema sofre uma mudança considerável,
passando-se a ter um professor para cada disciplina. Geralmente esse
professor possui diploma universitário, tendo concluído a
Licenciatura numa universidade ou, mais comumente, numa faculdade
isolada.
O
professor de Matemática do 5o
ao 9o
ano tem, na maioria das vezes, uma formação pouco satisfatória. Na
faculdade, salvo raras exceções, nunca estudou a matéria que vai
ensinar, pois ela não era considerada assunto de nível
universitário. Novamente, se olharmos para o panorama global do
país, veremos que, obtido seu diploma, o jovem professor terá como
base de orientação para seu trabalho os livros-texto disponíveis
no mercado e adotados pelas escolas onde vai lecionar.
E como
são esses livros? Há dezenas deles. Milhões de exemplares são
publicados anualmente, tornando ricos os autores mais adotados.
Verdadeiras fortunas são envolvidas nessa indústria. Uma situação
como esta, de grande competitividade e altíssimos lucros, deveria,
pelas regras usuais das atividades econômicas, conduzir a uma busca
pela qualidade, pelo aprimoramento do produto. Infelizmente não é
bem assim. O aprimoramento concentrou-se na parte gráfica, com a
natural e consequente elevação do preço dos livros. Mas a
qualidade científica e didática, em média, não é melhor hoje do
que há décadas.
Do 5o
ao 9o
ano os alunos têm em média 11 a 14 anos de idade. Nesta fase do seu
estudo da Matemática, dois notáveis saltos ocorrem (ou deveriam
ocorrer). O primeiro deles é o uso de letras para representar
variáveis ou incógnitas. Mais precisamente, a grande mudança não
consiste apenas em escrever uma letra para significar uma grandeza
variável. Ela está principalmente na prática de operar com a letra
que representa uma incógnita como se tratasse de algo conhecido,
obtendo-se sucessivamente condições mais e mais restritivas que ela
deve cumprir até encontrar seu valor.
O
segundo salto consiste no encontro com a ideia de demonstração, que
deveria acontecer entre os 13 e 14 anos. Com essa idade o aluno tem
maturidade suficiente para entender que alguns fatos matemáticos
simples, principalmente de natureza geométrica, devem ser
justificados de modo lógico e convincente. Esta prática não só o
prepara para estudos posteriores em Matemática como é de
considerável importância para sua formação intelectual e até
mesmo para o desenvolvimento de sua cidadania. Com efeito, aprendendo
os elementos básicos do raciocínio, o jovem saberá melhor empregar
seu poder de crítica e discernimento.
Lamentavelmente,
no ensino que se pratica na maioria das escolas, não há se quer uma
referência passageira à ideia de demonstração. Os fatos
geométricos são apresentados como dogmas, sem maiores preocupações
em justificá-los. Quanto às manipulações algébricas, elas são
apresentadas de modo formal, com poucas aplicações à realidade e
com abundantes exercícios de simplificação, equações mais ou
menos complicadas, polinômios cuja origem nunca se justifica, sem
dar ideia de por que se estuda tudo aquilo.
Por
que se estuda tudo isso é, naturalmente, uma questão que fica sem
resposta. O livro não diz, o aluno geralmente não quer saber e,
quando pergunta, ouve quase sempre a explicação de que a utilidade
e as aplicações serão vistas depois, nos seus estudos posteriores.
É
claro que, dado o caráter cumulativo dos conhecimentos matemáticos,
aos quais nos referimos antes, a prática de exercícios algébricos
formais é indispensável a fim de que se adquira a desenvoltura
necessária ao entendimento de temas mais avançados. Mas é preciso
reconhecer a aridez dessa atividade e intercalá-la com problemas
atraentes, provocantes e simples, que relacionem o conhecimento
matemático com a realidade do dia-a-dia ou mesmo com as Ciências
Naturais.
Um
exame dos livros didáticos de Matemática utilizados do 5o
ao 9o
ano nas escolas brasileiras mostra que os polinômios, as expressões
algébricas formais, os radicais, as equações e desigualdades do
primeiro grau são assuntos tratados geralmente de modo isento de
graves erros matemáticos e até mesmo, nos melhores textos, de forma
ordenada e clara. Mas falta em todos os casos motivação,
justificativa para a introdução desses assuntos, problemas
interessantes que os requeiram em suas soluções e contribuam para
desenvolver nos alunos a criatividade, a imaginação e a capacidade
de raciocínio.
O tema
“proporcionalidade”, assunto milenar e ainda básico, é
geralmente tratado de forma inadequada. Em primeiro lugar porque não
lhe é dada a dimensão devida nem são exploradas muitas de suas
inúmeras ocorrências. Em segundo lugar porque os livros — e
consequentemente os professores — não salientam devidamente a
necessidade de considerar as limitações da proporcionalidade
(direta ou inversa): se
dez operários constroem uma casa em cem dias, não se deve concluir
daí que mil operários construiriam a mesma casa num único dia.
Como
já mencionamos, outro defeito sério dos livros de Matemática do do
5o
ao 9o
ano é a falta de alguns exemplos simples de proposições
demonstradas em Geometria. A isto se acrescenta a ausência de
construções geométricas com régua e compasso.
Tratando-se
de ausências criticáveis, porém, uma das mais notáveis é a de
algumas noções de Estatística, em nível do que se encontra no
dia-a-dia dos jornais e da mídia em geral.
Não
podemos encerrar estas considerações sobre o ensino da Matemática
do 1o
ao 9o
ano das escolas brasileiras sem mencionar a questão do uso da
tecnologia.
Um dos
pontos salientes da campanha dos atuais reformistas é a utilização
de calculadoras e computadores no ensino. Como sempre, há aqui uma
confusão entre a utilidade de um instrumento, sua necessidade
pedagógica e mesmo a viabilidade do seu emprego efetivo. Ninguém
pode, em sã consciência, negar a enorme importância prática das
calculadoras e muito menos a posição fundamental dos computadores
na organização da sociedade moderna. O papel desses artefatos no
ensino, mais especialmente no ensino da Matemática, tem sido objeto
de estudos, debates e controvérsias.
Encerramos
estas considerações reafirmando que para aprender Matemática (ou
qualquer outra matéria) não há alternativas mágicas que
substituam o trabalho persistente, o esforço, a dedicação e a
vontade de progredir.
[Contato:
macolins@gmail.com]
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