segunda-feira, 29 de julho de 2013

A Matemática no Ensino Fundamental


A Matemática no Ensino Fundamental
(Artigo organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da Rede Estadual de Ensino do Maranhão)

Quando se fala em Matemática e em Educação matemática no Brasil, o nome de Elon Lages Lima aparece sempre à cabeça de uma lista de ilustres que deram, nas últimas décadas, um novo impulso à Matemática brasileira.”
(Nuno Crato, jornalista, escritor e matemático, ao entrevistar o professor Elon Lages Lima. Entrevista publicada em novembro de 2001, na Revista do seminário Expresso, de Lisboa.)

Todos os que se ocupam de Matemática, ou que a ela foram alguma vez submetidos, conhecem o caráter fortemente cumulativo dessa matéria: cada passo depende de modo essencial dos anteriores. Assim, é natural que os primeiros anos do treinamento matemático tenham uma importância fundamental no desempenho do aluno em seus estudos posteriores. Em particular, se queremos analisar os problemas relativos ao ensino da Matemática, é indispensável começar pelo Ensino Fundamental.
Antes de tudo, é preciso deixar bem claro que a Matemática se ocupa primordialmente de dois tipos de objetos: números e espaço (figuras geométricas). Por se ocupar de ideias básicas e fundamentais como estas é que a Matemática tem uma importância tão grande no currículo escolar e, mais geralmente, na construção da sociedade civilizada.
Durante os quatro primeiros anos de escola, o aluno precisa ganhar familiaridade com os números, sua escrita, sua nomenclatura, as operações entre eles, as noções de fração e número decimal e as aplicações mais simples desses conceitos a problemas cotidianos. Deve também aprender a trabalhar com as figuras geométricas mais simples (planas ou espaciais) e a estabelecer conexões entre números e figuras, medindo comprimentos, ângulos, áreas e volumes. Deve ganhar experiência com as diversas unidades de medida que compõem o sistema métrico.
O conteúdo básico da Matemática dos primeiros quatro anos da escola não difere muito do que nós, nossos pais e mesmo nossos avós aprenderam. A diferença, se existe, deve estar na compreensão de que certos exageros, ranços, hábitos arraigados, tradições injustificáveis e uma grande quantidade de entulho acumulado durante os séculos em que a rotina predominou nas salas de aula, todos esses excessos devem dar lugar a uma atitude mais equilibrada, que combine a necessária aquisição de úteis e eficazes reflexos condicionados com o desenvolvimento do raciocínio e a exposição do aluno a situações concretas e desafiadoras, que motivem e ilustrem o emprego dos conceitos essenciais que é obrigado a, e não pode eximir-se de, aprender.
Em suma: nos quatro primeiros anos de escola, a criança deve aprender a efetuar com destreza as operações fundamentais com inteiros, frações e números decimais, deve aprender a utilizar estas habilidades na solução de problemas concretos e atraentes, deve familiarizar-se com as figuras geométricas (planas e espaciais) mais simples, deve aprender a calcular comprimentos, áreas e volumes, bem como utilizar as unidades do sistema métrico decimal.
Tudo isto é muito claro e tem milênios de uso e experiência para justificar sua importância e orientar seu ensino.
No entanto, há dificuldades para a execução desse programa. Procuremos identificá-las.
Os personagens principais da ação ensino-aprendizagem são dois: o aluno e o professor. Da primeira à quarta série, quase sempre são o aluno e a professora.
Quanto ao aluno deve ficar entendido que não são necessários talentos especiais nem inteligência excepcional para aprender a Matemática que se ensina nas quatro, ou mesmo nas nove, primeiras séries da escola. Qualquer criança cuja capacidade mental lhe permita aprender a ler e escrever é também capaz de aprender a Matemática que se ensina da primeira à quarta série da escola.
Mais ainda: todas as matérias lecionadas nos nove anos do Ensino Fundamental apresentam essencialmente o mesmo grau de dificuldade e nenhuma delas exige habilidades ou pendores especiais para aprendê-las. O que provavelmente a Matemática requer um pouco mais do que as outras matérias é concentração, cuidado, atenção e ordem no trabalho. Mas estas virtudes, que a Matemática ajuda a desenvolver, são parte integrante de uma educação bem orientada e não se nasce com elas: o lar e a escola são os lugares onde as aprendemos.
Quanto à professora, aí está a parte crucial do problema.
No Brasil, com raríssimas exceções, as professoras que se ocupam das quatro primeiras séries não possuem curso superior. Muitas delas sequer concluíram o Ensino Médio. Tendo que ensinar várias matérias numa determinada série, seus conhecimentos matemáticos e sua experiência são extremamente limitados. Nas escolas, quando alunas, lhes ensinaram pouco e aprenderam ainda menos. Para organizar suas aulas, valem-se de livros-texto, nos quais são obrigadas a crer pois não têm outra opção. Esses livros, que geralmente procuram seguir as tendências dominantes no momento em que foram escritos, lembram modelitos fabricados pela costureira do bairro, tentando copiar os estilistas de Paris e Milão. A cada década muda a ênfase.
Primeiro veio a Matemática Moderna, enchendo os textos com diagramas de Venn, gráficos de relações e a mensagem de que “abstrato é bom, concreto é ruim; geral é moderno, particular é antiquado.” Depois ocorreu a onda do “problem solving”, mais difícil de seguir porque exigia muita imaginação e criatividade, além de conter em si uma espécie de contradição: se a resolução de problemas é uma forma de fugir à rotina, catalogá-los e apresentar técnicas para resolver cada tipo-padrão constitui também uma rotina. No momento, temos o que se poderia chamar “reform Mathematics”, com uma série de dogmas onde predominam o construtivismo e o uso de alta tecnologia em sala de aula.
O curioso é que cada uma dessas ondas tem origem num ponto válido. Ocorre, porém, que seus zelosos divulgadores, aqueles que sempre aparecem como arautos da verdade absoluta, esticam esses pontos de forma dogmática e abrangente, negando inclusive as ondas anteriores, que muitos deles ardorosamente defenderam na época. E assumem posições radicais, propondo métodos e atitudes impraticáveis no dia-a-dia da sala de aula, apregoando exageros inadmissíveis.
Os que aderem a essas marés de fé frequentemente esquecem de exercer a salutar prática da autocrítica. Um exemplo recente pode ser visto na versão preliminar de um documento oficial, onde se lê que “a necessidade de se lidar com frações na vida quotidiana limita-se praticamente a metade, terços e quartos e isto se dá, quase exclusivamente, pela linguagem oral”.
Esta afirmação irresponsável tem, provavelmente, a seguinte origem: alguém (corretamente) observou que na escola devia-se ensinar melhor o uso de decimais em vez de insistir em trabalhosas operações envolvendo enormes frações ordinárias. O mau entendedor, ignorando as práticas universais da Matemática e distorcendo os usos diários da sociedade, achou que tal observação implicava no banimento das frações e emitiu a asneira acima citada.
Vejamos outro exemplo. No ensino tradicional, em que a geração dos nossos antepassados foi formada, havia uma predominância excessiva da memorização de tabelas, regras e fórmulas. Em seu formato mais estereotipado, aquele ensino dava pouca ou nenhuma importância à conceituação, ao raciocínio e à discussão das ideias. Consideremos, digamos, a igualdade 7 × 9 = 63. O aluno tinha que sabê-la de cor, recitá-la automaticamente, junto com centenas de outros resultados, quase sempre sem refletir sobre o significado da operação 7 × 9. Os educadores sensatos, corretamente, insistem no fato de que é necessário compreender o que quer dizer 7 × 9, pois do contrário o conhecimento daquela igualdade não teria aplicabilidade.
Esta mensagem de elementar bom senso é retransmitida por muitos dos chamados educadores de forma deturpada, investindo contra a memorização de resultados matemáticos, exigindo que eles sejam “entendidos” como se me fosse necessário (ou mesmo possível) entender o número do meu telefone. É obviamente importante entender os significados de 7 × 9 e 10 + 8, por exemplo. Sem esta compreensão não se podem utilizar as operações aritméticas em problemas concretos. Mas não tem cabimento tentar entender por que 7 × 9 = 63 e por que 10 + 8 = 18. Sessenta e três e dezoito são os nomes dos números que resultam da multiplicação de sete por nove e da adição de dez com oito. Só isso. Não há nada a entender. O que deve ser entendido é que memorizar e compreender são tarefas complementares e não antagônicas. Ambas são extremamente importantes, como importante é o discernimento dos casos em que se usam as duas ou apenas uma (e qual) delas.
Conforme dito anteriormente, do 5o ao 9o ano do Ensino Fundamental o sistema sofre uma mudança considerável, passando-se a ter um professor para cada disciplina. Geralmente esse professor possui diploma universitário, tendo concluído a Licenciatura numa universidade ou, mais comumente, numa faculdade isolada.
O professor de Matemática do 5o ao 9o ano tem, na maioria das vezes, uma formação pouco satisfatória. Na faculdade, salvo raras exceções, nunca estudou a matéria que vai ensinar, pois ela não era considerada assunto de nível universitário. Novamente, se olharmos para o panorama global do país, veremos que, obtido seu diploma, o jovem professor terá como base de orientação para seu trabalho os livros-texto disponíveis no mercado e adotados pelas escolas onde vai lecionar.
E como são esses livros? Há dezenas deles. Milhões de exemplares são publicados anualmente, tornando ricos os autores mais adotados. Verdadeiras fortunas são envolvidas nessa indústria. Uma situação como esta, de grande competitividade e altíssimos lucros, deveria, pelas regras usuais das atividades econômicas, conduzir a uma busca pela qualidade, pelo aprimoramento do produto. Infelizmente não é bem assim. O aprimoramento concentrou-se na parte gráfica, com a natural e consequente elevação do preço dos livros. Mas a qualidade científica e didática, em média, não é melhor hoje do que há décadas.
Do 5o ao 9o ano os alunos têm em média 11 a 14 anos de idade. Nesta fase do seu estudo da Matemática, dois notáveis saltos ocorrem (ou deveriam ocorrer). O primeiro deles é o uso de letras para representar variáveis ou incógnitas. Mais precisamente, a grande mudança não consiste apenas em escrever uma letra para significar uma grandeza variável. Ela está principalmente na prática de operar com a letra que representa uma incógnita como se tratasse de algo conhecido, obtendo-se sucessivamente condições mais e mais restritivas que ela deve cumprir até encontrar seu valor.
O segundo salto consiste no encontro com a ideia de demonstração, que deveria acontecer entre os 13 e 14 anos. Com essa idade o aluno tem maturidade suficiente para entender que alguns fatos matemáticos simples, principalmente de natureza geométrica, devem ser justificados de modo lógico e convincente. Esta prática não só o prepara para estudos posteriores em Matemática como é de considerável importância para sua formação intelectual e até mesmo para o desenvolvimento de sua cidadania. Com efeito, aprendendo os elementos básicos do raciocínio, o jovem saberá melhor empregar seu poder de crítica e discernimento.
Lamentavelmente, no ensino que se pratica na maioria das escolas, não há se quer uma referência passageira à ideia de demonstração. Os fatos geométricos são apresentados como dogmas, sem maiores preocupações em justificá-los. Quanto às manipulações algébricas, elas são apresentadas de modo formal, com poucas aplicações à realidade e com abundantes exercícios de simplificação, equações mais ou menos complicadas, polinômios cuja origem nunca se justifica, sem dar ideia de por que se estuda tudo aquilo.
Por que se estuda tudo isso é, naturalmente, uma questão que fica sem resposta. O livro não diz, o aluno geralmente não quer saber e, quando pergunta, ouve quase sempre a explicação de que a utilidade e as aplicações serão vistas depois, nos seus estudos posteriores.
É claro que, dado o caráter cumulativo dos conhecimentos matemáticos, aos quais nos referimos antes, a prática de exercícios algébricos formais é indispensável a fim de que se adquira a desenvoltura necessária ao entendimento de temas mais avançados. Mas é preciso reconhecer a aridez dessa atividade e intercalá-la com problemas atraentes, provocantes e simples, que relacionem o conhecimento matemático com a realidade do dia-a-dia ou mesmo com as Ciências Naturais.
Um exame dos livros didáticos de Matemática utilizados do 5o ao 9o ano nas escolas brasileiras mostra que os polinômios, as expressões algébricas formais, os radicais, as equações e desigualdades do primeiro grau são assuntos tratados geralmente de modo isento de graves erros matemáticos e até mesmo, nos melhores textos, de forma ordenada e clara. Mas falta em todos os casos motivação, justificativa para a introdução desses assuntos, problemas interessantes que os requeiram em suas soluções e contribuam para desenvolver nos alunos a criatividade, a imaginação e a capacidade de raciocínio.
O tema “proporcionalidade”, assunto milenar e ainda básico, é geralmente tratado de forma inadequada. Em primeiro lugar porque não lhe é dada a dimensão devida nem são exploradas muitas de suas inúmeras ocorrências. Em segundo lugar porque os livros — e consequentemente os professores — não salientam devidamente a necessidade de considerar as limitações da proporcionalidade (direta ou inversa): se dez operários constroem uma casa em cem dias, não se deve concluir daí que mil operários construiriam a mesma casa num único dia.
Como já mencionamos, outro defeito sério dos livros de Matemática do do 5o ao 9o ano é a falta de alguns exemplos simples de proposições demonstradas em Geometria. A isto se acrescenta a ausência de construções geométricas com régua e compasso.
Tratando-se de ausências criticáveis, porém, uma das mais notáveis é a de algumas noções de Estatística, em nível do que se encontra no dia-a-dia dos jornais e da mídia em geral.
Não podemos encerrar estas considerações sobre o ensino da Matemática do 1o ao 9o ano das escolas brasileiras sem mencionar a questão do uso da tecnologia.
Um dos pontos salientes da campanha dos atuais reformistas é a utilização de calculadoras e computadores no ensino. Como sempre, há aqui uma confusão entre a utilidade de um instrumento, sua necessidade pedagógica e mesmo a viabilidade do seu emprego efetivo. Ninguém pode, em sã consciência, negar a enorme importância prática das calculadoras e muito menos a posição fundamental dos computadores na organização da sociedade moderna. O papel desses artefatos no ensino, mais especialmente no ensino da Matemática, tem sido objeto de estudos, debates e controvérsias.
Encerramos estas considerações reafirmando que para aprender Matemática (ou qualquer outra matéria) não há alternativas mágicas que substituam o trabalho persistente, o esforço, a dedicação e a vontade de progredir.

[Contato: macolins@gmail.com]

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