Ensino:
o efeito dominó
(Artigo
organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da
Rede Estadual de Ensino do Maranhão)
Um fenômeno
negativo, existente no ensino da Matemática em vários países, vem
sendo descrito por um grande número de matemáticos. Tal fenômeno
tem sido denominado de “efeito dominó”.
O
que é o efeito dominó?
Se você colocar várias peças de dominó numa mesa, pode fazer cair
todas derrubando só uma. Na educação este fenômeno se mostra em
várias versões. Versão grave: em cada curso vários alunos sentem
dificuldades, pois trazem lacunas de disciplinas anteriores, portanto
terão dificuldades nas disciplinas seguintes. Versão suave: o
ensino de cada disciplina é trivializado, pois disciplinas
anteriores foram trivializadas, portanto os cursos seguintes também
o serão.
É
possível um professor sozinho parar o fenômeno dominó?
Parar, não. Apenas suavizar. Imagine que você começa ensinar em um
curso e descobre que seus alunos não estão preparados. O
que o professor pode fazer?
Penso que é necessário começar a disciplina com uma revisão dos
assuntos que os alunos são supostos saber mas de fato não sabem.
Infelizmente, esta revisão pode demorar tanto que faltará tempo
para ensinar o conteúdo do seu próprio curso. Consequência: alunos
capazes não são desafiados como precisam para tornarem-se
especialistas de alto nível. Quando assistem a um curso novo esperam
estudar assuntos novos, mas, ao invés disto, têm que assistir a
revisões que não precisam. Quando o professor afinal passa a cobrir
assuntos novos, já não há tempo para elaborá-los. Alunos fracos
aprendem um pouco aqui, um pouco ali, mas sempre às pressas, e
portanto ficam sempre confusos. A sociedade passa a não poder
acreditar em diplomas, pois não sabe se recebe especialistas
competentes ou não.
O fenômeno
dominó pode acontecer em várias disciplinas, mas é mais nefasto no
ensino da Matemática onde a ordem é importantíssima. No ensino de
Geografia, a Ásia pode vir antes ou após a América, mas na
Matemática Álgebra não pode vir antes de Aritmética. Mesmo assim,
para estudar Álgebra não é suficiente fazer operações de
Aritmética, é necessário também resolver problemas de Aritmética.
Para estudar Cálculo é preciso saber toda a matemática escolar
incluindo Álgebra, Geometria e praticar bastante a resolução de
problemas. Toda matemática é uma escala (ou sistema de várias
escalas) onde subir só é possível passo a passo, consolidando-se
em cada patamar o conhecimento adquirido. Cada passo não significa
apenas memorizar, mas entender, pensar e resolver problemas.
Exemplo
brasileiro (versão suave):
Quando o professor André Toom (com experiência internacional em
pesquisa e ensino na Rússia, Estados Unidos e Brasil) ensinou (no
Brasil) uma disciplina de Processos Estocásticos, começou
verificando se os alunos sabiam a Teoria de Matrizes. Descobriu que
não sabiam nada. Em seguida, verificou se eles sabiam a Teoria dos
Números Complexos; por exemplo, se podiam resolver a equação z3
= 1. Não podiam. Portanto, começou o curso com Números Complexos e
com apresentação geométrica e solução geométrica das equações.
Em seguida ensinou Matrizes e como achar auto-valores e auto-vetores
e só no meio do semestre começou a ensinar Cadeias de Markov.
Exemplo
norte-americano (versão suave):
O professor André várias vezes ensinou Álgebra Abstrata numa
universidade dos Estados Unidos. Na primeira vez, ensinou os
seguintes tópicos clássicos: Grupos, Anéis e Corpos. Os alunos
foram corteses, mas indiferentes. O professor pensou nisto e entendeu
que antes de falar sobre estas abstrações é necessário estudar
algumas álgebras particulares. No outro ano começou com a Teoria
dos Números Complexos, com interpretação geométrica e resolução
de equações cúbicas. Os alunos ficaram mais interessados. Mas isto
não foi Álgebra Abstrata, foi uma preparação para ela.
A versão grave
ocorre quando os professores não entendem que os alunos não estão
preparados. São comuns exemplos tristes como este.
É impossível
discutir o ensino na universidade sem falar no ensino básico. A
universidade depende muito da escola. A escola pode e deve incluir
assuntos teóricos. Assim ocorre em vários países, incluindo a
Rússia. Mas alguns educadores norte-americanos têm uma ideia
oposta: insistem que os jovens só têm interesse por coisas que
podem aplicar na vida cotidiana. O resultado é a falta dramática de
preparação no desenvolvimento do intelecto, sem o qual é
impossível estudar em uma universidade.
Nas últimas
décadas, o Brasil, como vários outros países, consideram os EUA
como um exemplo a seguir. Isto pode fazer sentido em várias áreas,
mas o ensino da Matemática é ruim nos EUA. Talvez a razão
principal seja a má preparação dos professores da escola
norte-americana, a qual anda nas bocas do mundo. [Recentemente,
Liping Ma mostrou no seu livro “Knowing and teaching elementary
mathematics”, que professores norte-americanos do primeiro grau não
sabem tão bem Matemática como alunos chineses da 9a
série.] A educação norte-americana tem várias distorções que
são descritas em vários livros. [Um
ótimo livro é o de Diane Ravitch, “Left Back: A Century of Failed
School Reforms”.] A
maior distorção é o menosprezo do caráter estrutural da
Matemática. Os Estados Unidos são o único país sem currículo
nacional de ensino de Matemática. O resultado típico é que alunos
são mal orientados e frequentam cursos avançados sem preparação.
Vários educadores norte-americanos têm orgulho deste fato.
Que
bons exemplos pode o Brasil seguir?
Segundo TIMSS, a mais prestigiosa pesquisa internacional sobre a
qualidade do ensino de Matemática e ciência, oferecem os melhores
cursos de Matemática no Ensino Médio vários países asiáticos
(Cingapura, Coreia, Japão) e que o ensino em vários países
europeus, incluindo a Rússia, também é bom. O entendimento do
caráter estrutural da Matemática é um fator muito importante na
qualidade do ensino em todos os países. Quase todos os alunos russos
não têm aula de Cálculo na escola, porém quando chegam à
universidade estão prontos para entendê-lo, porque sabem Álgebra e
Geometria muito bem. A percentagem dos alunos norte-americanos que
“aprendem” Cálculo na escola é altíssima, mas foram mal
preparados, pois a maioria deles teve uma preparação ruim, sem
resolver problemas de Álgebra e Geometria. Segundo o professor André
Toom, “ensinar a alunos norte-americanos que aprendiam Cálculo na
escola é mais difícil que a outros estudantes, porque estes alunos
desenvolvem um pouco de assuntos rotineiros e acham que é Cálculo”.
Por que tantos alunos norte-americanos têm aula de Cálculo na
escola? Segundo o professor André, a primeira razão é a pobreza de
conteúdo dos cursos elementares. Vários professores do Ensino Médio
nos EUA têm uma ideia muito rasteira da Matemática Elementar. Nas
escolas russas, os alunos resolvem problemas com vários passos, já
na 4a
série. Nas escolas norte-americanas, mesmo na 6a
série, os alunos ainda resolvem problemas com apenas um passo.
Contudo, durante vários anos, ao invés de reconhecer a necessidade
de entender melhor os tópicos básicos e saber resolver mais
problemas, vários líderes da educação norte-americana viraram a
cabeça dos professores da escola com projetos fantásticos, como,
por exemplo, comparar várias geometrias, ensinar fractais, métodos
de estatística etc. Educadores norte-americanos chamam este fenômeno
“milha de largura, polegada de profundidade” e consideram-no um
defeito muito sério. No Brasil nunca se ouviu esta frase; é uma
pena, pois o mesmo fenômeno acontece neste país.
Enquanto se exige
da escola fazer o impossível, ela não consegue fazer o que é
possível. Em muitas universidades norte-americanas já existem
programas amplos com conteúdo escolar. Esta prática começou como
emergência, mas estabeleceu-se e cresce todo o tempo. Existe um
provérbio que diz: “As universidades norte-americanas são as mais
caras escolas do mundo”. É realmente caro pagar salário
universitário para ensinar conteúdos escolares. Precisamos da mesma
coisa no Brasil? É mais econômico pagar mais para professores da
escola, mas obrigando-os a cumprir seu dever. Entretanto, o dever da
escola deve ser definido justa e realmente. Não se deve encarregar
escolas ou cursinhos dos deveres da universidade.
O
que as escolas devem ensinar?
Em duas palavras: Álgebra e Geometria. Estas duas disciplinas são
fundamentais, são bastante ricas de conteúdo e têm problemas que
podem entusiasmar um cientista futuro. Muitos matemáticos russos
começaram a interessar-se por Matemática por causa destes problemas
de Álgebra e Geometria escolar. Os livros escolares russos são
cheios de problemas interessantes.
Como
a escola pode realmente ajudar a universidade?
Ensinando aos alunos a resolver problemas e também ensinando a
provar de maneira rigorosa, que é a essência da Matemática.
Segundo a teoria de Piaget, a maioria das crianças atinge o estágio
das “operações formais”, que é o último estágio na sua
teoria, por volta dos 10-14 anos. Esta idade é a mais oportuna para
começar a ensinar provas. A prática de educação na Rússia e em
vários outros países usa esta possibilidade. Parece que no Brasil
esta possibilidade natural é pouco usada: mesmo escolas privadas e
caras não mostram a Matemática como uma ciência dedutiva. Mesmo os
primeiros cursos das universidades não ensinam provas. O curso
típico de Cálculo é no nível intuitivo.
Existem muitos
tópicos rigorosos que podem ser ensinados na escola. Alguns
exemplos: 1) Geometria euclidiana com provas dos teoremas. É claro
que na escola as provas não podem ser completamente rigorosas, mas
mesmo assim são muito úteis. Por exemplo, as crianças de 12-16
anos de idade podem entender várias provas: do teorema de Pitágoras
(há várias provas), segmentos proporcionais e relações entre
ângulos e arcos num círculo e também que as três bissetrizes de
um triângulo se intersectam num ponto, analogamente para
mediatrizes, alturas e medianas. 2) A Teoria dos Números, por
exemplo: a) O conjunto dos números primos é infinito. Este
argumento famoso já era conhecido por Euclides. b) Condições de
divisibilidade: fáceis por 2, 5, 4, 8 e mais difíceis por 3, 9 e
11. O estudo de números inteiros fornece a possibilidade de ensinar
aos alunos algoritmos, o que é uma ótima preparação para Ciência
da Computação. 3) Definição dos Números Reais como frações
decimais infinitas. Uma pergunta muito frutífera é se a fração
decimal infinita 0,999... (uma série infinita de noves após a
vírgula) é igual a 1 ou menor do que 1, e se menor, quanto? A
existência de números racionais, por exemplo √2,
√3,
√2
+ √3
e várias outras raízes. As provas de que os números racionais se
transformam em frações decimais periódicas e vice-versa. Também é
necessário ensinar aos alunos vários métodos de prova, incluindo a
prova por contradição e o método da indução matemática.
Os
professores universitários podem influir na escola?
Com certeza e mais ainda, não podem se omitir de influir. Colocando
problemas no vestibular, os professores universitários
inevitavelmente mandam uma ordem para as escolas: o que estudar.
Influência não deve jamais separar-se de responsabilidade, devendo
sempre se pensar sobre as consequências dos vestibulares. Há livros
com problemas de vestibular onde se encontram assuntos cujo lugar
certo é na universidade: limites,
derivadas,
noções
de integral
etc. Isto é um erro. Se todos estes tópicos estão presentes mesmo
no vestibular, por que os alunos universitários não sabem tudo
isto? Porque a presença de limites,
derivadas
e outros tópicos avançados no vestibular é esnobismo inútil. Se
olharmos os problemas em si, poderemos constatar que todos são
exercícios superficiais (artificiais). Os vestibulares menosprezam
Matemática Elementar, onde há muitos problemas úteis e
interessantes, e no lugar disto estão imitações vazias de
Matemática universitária. O resultado é que os alunos gastam tempo
decorando material para o vestibular e entram na universidade sem
entender os assuntos mais básicos de Matemática Elementar.
Como
evitar o efeito dominó?
Sempre lembrar o caráter estrutural da Matemática. Na Matemática
existem tópicos básicos sem os quais é impossível estudar
(avançar). Na Matemática escolar, Álgebra e Geometria; na
Matemática universitária, Cálculo e Álgebra Linear. Orientar
alunos no trabalho sistemático, curso após curso, passo após
passo. Abandonar “fogos artificiais” e esnobismo, a tendência de
valorizar nomes mais que conteúdo. Excluir todos os tópicos
universitários (Cálculo e Álgebra Linear) do vestibular e incluir
mais problemas que obriguem (motivem) os alunos a pensar e provar.
Quando alunos novos entram na universidade, antes de tudo,
ensinar-lhes as duas disciplinas fundamentais: Cálculo e Álgebra
Linear. Fazer isto com definições, provas e resolução de
problemas.
[Contato:
macolins@gmail.com]
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