segunda-feira, 29 de julho de 2013

Ensino: o efeito dominó


Ensino: o efeito dominó
(Artigo organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da Rede Estadual de Ensino do Maranhão)

Um fenômeno negativo, existente no ensino da Matemática em vários países, vem sendo descrito por um grande número de matemáticos. Tal fenômeno tem sido denominado de “efeito dominó”.
O que é o efeito dominó? Se você colocar várias peças de dominó numa mesa, pode fazer cair todas derrubando só uma. Na educação este fenômeno se mostra em várias versões. Versão grave: em cada curso vários alunos sentem dificuldades, pois trazem lacunas de disciplinas anteriores, portanto terão dificuldades nas disciplinas seguintes. Versão suave: o ensino de cada disciplina é trivializado, pois disciplinas anteriores foram trivializadas, portanto os cursos seguintes também o serão.
É possível um professor sozinho parar o fenômeno dominó? Parar, não. Apenas suavizar. Imagine que você começa ensinar em um curso e descobre que seus alunos não estão preparados. O que o professor pode fazer? Penso que é necessário começar a disciplina com uma revisão dos assuntos que os alunos são supostos saber mas de fato não sabem. Infelizmente, esta revisão pode demorar tanto que faltará tempo para ensinar o conteúdo do seu próprio curso. Consequência: alunos capazes não são desafiados como precisam para tornarem-se especialistas de alto nível. Quando assistem a um curso novo esperam estudar assuntos novos, mas, ao invés disto, têm que assistir a revisões que não precisam. Quando o professor afinal passa a cobrir assuntos novos, já não há tempo para elaborá-los. Alunos fracos aprendem um pouco aqui, um pouco ali, mas sempre às pressas, e portanto ficam sempre confusos. A sociedade passa a não poder acreditar em diplomas, pois não sabe se recebe especialistas competentes ou não.
O fenômeno dominó pode acontecer em várias disciplinas, mas é mais nefasto no ensino da Matemática onde a ordem é importantíssima. No ensino de Geografia, a Ásia pode vir antes ou após a América, mas na Matemática Álgebra não pode vir antes de Aritmética. Mesmo assim, para estudar Álgebra não é suficiente fazer operações de Aritmética, é necessário também resolver problemas de Aritmética. Para estudar Cálculo é preciso saber toda a matemática escolar incluindo Álgebra, Geometria e praticar bastante a resolução de problemas. Toda matemática é uma escala (ou sistema de várias escalas) onde subir só é possível passo a passo, consolidando-se em cada patamar o conhecimento adquirido. Cada passo não significa apenas memorizar, mas entender, pensar e resolver problemas.
Exemplo brasileiro (versão suave): Quando o professor André Toom (com experiência internacional em pesquisa e ensino na Rússia, Estados Unidos e Brasil) ensinou (no Brasil) uma disciplina de Processos Estocásticos, começou verificando se os alunos sabiam a Teoria de Matrizes. Descobriu que não sabiam nada. Em seguida, verificou se eles sabiam a Teoria dos Números Complexos; por exemplo, se podiam resolver a equação z3 = 1. Não podiam. Portanto, começou o curso com Números Complexos e com apresentação geométrica e solução geométrica das equações. Em seguida ensinou Matrizes e como achar auto-valores e auto-vetores e só no meio do semestre começou a ensinar Cadeias de Markov.
Exemplo norte-americano (versão suave): O professor André várias vezes ensinou Álgebra Abstrata numa universidade dos Estados Unidos. Na primeira vez, ensinou os seguintes tópicos clássicos: Grupos, Anéis e Corpos. Os alunos foram corteses, mas indiferentes. O professor pensou nisto e entendeu que antes de falar sobre estas abstrações é necessário estudar algumas álgebras particulares. No outro ano começou com a Teoria dos Números Complexos, com interpretação geométrica e resolução de equações cúbicas. Os alunos ficaram mais interessados. Mas isto não foi Álgebra Abstrata, foi uma preparação para ela.
A versão grave ocorre quando os professores não entendem que os alunos não estão preparados. São comuns exemplos tristes como este.
É impossível discutir o ensino na universidade sem falar no ensino básico. A universidade depende muito da escola. A escola pode e deve incluir assuntos teóricos. Assim ocorre em vários países, incluindo a Rússia. Mas alguns educadores norte-americanos têm uma ideia oposta: insistem que os jovens só têm interesse por coisas que podem aplicar na vida cotidiana. O resultado é a falta dramática de preparação no desenvolvimento do intelecto, sem o qual é impossível estudar em uma universidade.
Nas últimas décadas, o Brasil, como vários outros países, consideram os EUA como um exemplo a seguir. Isto pode fazer sentido em várias áreas, mas o ensino da Matemática é ruim nos EUA. Talvez a razão principal seja a má preparação dos professores da escola norte-americana, a qual anda nas bocas do mundo. [Recentemente, Liping Ma mostrou no seu livro “Knowing and teaching elementary mathematics”, que professores norte-americanos do primeiro grau não sabem tão bem Matemática como alunos chineses da 9a série.] A educação norte-americana tem várias distorções que são descritas em vários livros. [Um ótimo livro é o de Diane Ravitch, “Left Back: A Century of Failed School Reforms”.] A maior distorção é o menosprezo do caráter estrutural da Matemática. Os Estados Unidos são o único país sem currículo nacional de ensino de Matemática. O resultado típico é que alunos são mal orientados e frequentam cursos avançados sem preparação. Vários educadores norte-americanos têm orgulho deste fato.
Que bons exemplos pode o Brasil seguir? Segundo TIMSS, a mais prestigiosa pesquisa internacional sobre a qualidade do ensino de Matemática e ciência, oferecem os melhores cursos de Matemática no Ensino Médio vários países asiáticos (Cingapura, Coreia, Japão) e que o ensino em vários países europeus, incluindo a Rússia, também é bom. O entendimento do caráter estrutural da Matemática é um fator muito importante na qualidade do ensino em todos os países. Quase todos os alunos russos não têm aula de Cálculo na escola, porém quando chegam à universidade estão prontos para entendê-lo, porque sabem Álgebra e Geometria muito bem. A percentagem dos alunos norte-americanos que “aprendem” Cálculo na escola é altíssima, mas foram mal preparados, pois a maioria deles teve uma preparação ruim, sem resolver problemas de Álgebra e Geometria. Segundo o professor André Toom, “ensinar a alunos norte-americanos que aprendiam Cálculo na escola é mais difícil que a outros estudantes, porque estes alunos desenvolvem um pouco de assuntos rotineiros e acham que é Cálculo”. Por que tantos alunos norte-americanos têm aula de Cálculo na escola? Segundo o professor André, a primeira razão é a pobreza de conteúdo dos cursos elementares. Vários professores do Ensino Médio nos EUA têm uma ideia muito rasteira da Matemática Elementar. Nas escolas russas, os alunos resolvem problemas com vários passos, já na 4a série. Nas escolas norte-americanas, mesmo na 6a série, os alunos ainda resolvem problemas com apenas um passo. Contudo, durante vários anos, ao invés de reconhecer a necessidade de entender melhor os tópicos básicos e saber resolver mais problemas, vários líderes da educação norte-americana viraram a cabeça dos professores da escola com projetos fantásticos, como, por exemplo, comparar várias geometrias, ensinar fractais, métodos de estatística etc. Educadores norte-americanos chamam este fenômeno “milha de largura, polegada de profundidade” e consideram-no um defeito muito sério. No Brasil nunca se ouviu esta frase; é uma pena, pois o mesmo fenômeno acontece neste país.
Enquanto se exige da escola fazer o impossível, ela não consegue fazer o que é possível. Em muitas universidades norte-americanas já existem programas amplos com conteúdo escolar. Esta prática começou como emergência, mas estabeleceu-se e cresce todo o tempo. Existe um provérbio que diz: “As universidades norte-americanas são as mais caras escolas do mundo”. É realmente caro pagar salário universitário para ensinar conteúdos escolares. Precisamos da mesma coisa no Brasil? É mais econômico pagar mais para professores da escola, mas obrigando-os a cumprir seu dever. Entretanto, o dever da escola deve ser definido justa e realmente. Não se deve encarregar escolas ou cursinhos dos deveres da universidade.
O que as escolas devem ensinar? Em duas palavras: Álgebra e Geometria. Estas duas disciplinas são fundamentais, são bastante ricas de conteúdo e têm problemas que podem entusiasmar um cientista futuro. Muitos matemáticos russos começaram a interessar-se por Matemática por causa destes problemas de Álgebra e Geometria escolar. Os livros escolares russos são cheios de problemas interessantes.
Como a escola pode realmente ajudar a universidade? Ensinando aos alunos a resolver problemas e também ensinando a provar de maneira rigorosa, que é a essência da Matemática. Segundo a teoria de Piaget, a maioria das crianças atinge o estágio das “operações formais”, que é o último estágio na sua teoria, por volta dos 10-14 anos. Esta idade é a mais oportuna para começar a ensinar provas. A prática de educação na Rússia e em vários outros países usa esta possibilidade. Parece que no Brasil esta possibilidade natural é pouco usada: mesmo escolas privadas e caras não mostram a Matemática como uma ciência dedutiva. Mesmo os primeiros cursos das universidades não ensinam provas. O curso típico de Cálculo é no nível intuitivo.
Existem muitos tópicos rigorosos que podem ser ensinados na escola. Alguns exemplos: 1) Geometria euclidiana com provas dos teoremas. É claro que na escola as provas não podem ser completamente rigorosas, mas mesmo assim são muito úteis. Por exemplo, as crianças de 12-16 anos de idade podem entender várias provas: do teorema de Pitágoras (há várias provas), segmentos proporcionais e relações entre ângulos e arcos num círculo e também que as três bissetrizes de um triângulo se intersectam num ponto, analogamente para mediatrizes, alturas e medianas. 2) A Teoria dos Números, por exemplo: a) O conjunto dos números primos é infinito. Este argumento famoso já era conhecido por Euclides. b) Condições de divisibilidade: fáceis por 2, 5, 4, 8 e mais difíceis por 3, 9 e 11. O estudo de números inteiros fornece a possibilidade de ensinar aos alunos algoritmos, o que é uma ótima preparação para Ciência da Computação. 3) Definição dos Números Reais como frações decimais infinitas. Uma pergunta muito frutífera é se a fração decimal infinita 0,999... (uma série infinita de noves após a vírgula) é igual a 1 ou menor do que 1, e se menor, quanto? A existência de números racionais, por exemplo 2, √3, √2 + √3 e várias outras raízes. As provas de que os números racionais se transformam em frações decimais periódicas e vice-versa. Também é necessário ensinar aos alunos vários métodos de prova, incluindo a prova por contradição e o método da indução matemática.
Os professores universitários podem influir na escola? Com certeza e mais ainda, não podem se omitir de influir. Colocando problemas no vestibular, os professores universitários inevitavelmente mandam uma ordem para as escolas: o que estudar. Influência não deve jamais separar-se de responsabilidade, devendo sempre se pensar sobre as consequências dos vestibulares. Há livros com problemas de vestibular onde se encontram assuntos cujo lugar certo é na universidade: limites, derivadas, noções de integral etc. Isto é um erro. Se todos estes tópicos estão presentes mesmo no vestibular, por que os alunos universitários não sabem tudo isto? Porque a presença de limites, derivadas e outros tópicos avançados no vestibular é esnobismo inútil. Se olharmos os problemas em si, poderemos constatar que todos são exercícios superficiais (artificiais). Os vestibulares menosprezam Matemática Elementar, onde há muitos problemas úteis e interessantes, e no lugar disto estão imitações vazias de Matemática universitária. O resultado é que os alunos gastam tempo decorando material para o vestibular e entram na universidade sem entender os assuntos mais básicos de Matemática Elementar.
Como evitar o efeito dominó? Sempre lembrar o caráter estrutural da Matemática. Na Matemática existem tópicos básicos sem os quais é impossível estudar (avançar). Na Matemática escolar, Álgebra e Geometria; na Matemática universitária, Cálculo e Álgebra Linear. Orientar alunos no trabalho sistemático, curso após curso, passo após passo. Abandonar “fogos artificiais” e esnobismo, a tendência de valorizar nomes mais que conteúdo. Excluir todos os tópicos universitários (Cálculo e Álgebra Linear) do vestibular e incluir mais problemas que obriguem (motivem) os alunos a pensar e provar. Quando alunos novos entram na universidade, antes de tudo, ensinar-lhes as duas disciplinas fundamentais: Cálculo e Álgebra Linear. Fazer isto com definições, provas e resolução de problemas.

[Contato: macolins@gmail.com]

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