segunda-feira, 29 de julho de 2013

Matemática e construção da cidadania


Matemática e construção da cidadania
(Artigo organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da Rede Estadual de Ensino do Maranhão)

Introdução

A Matemática é uma ciência viva, não apenas no cotidiano dos cidadãos, mas também nas universidades e centros de pesquisas, onde se verifica, hoje, uma impressionante produção de novos conhecimentos que, a par de seu valor intrínseco, de natureza lógica, têm sido instrumentos úteis na solução de problemas científicos e tecnológicos da maior importância.
A Matemática caracteriza-se como uma forma de compreender e atuar no mundo. O conhecimento gerado nessa área do saber é visto como fruto da construção humana na sua interação constante com o contexto natural, social e cultural.
Assim, falar em formação básica para a cidadania significa refletir sobre as condições humanas de sobrevivência, sobre a inserção das pessoas no mundo do trabalho, das relações sociais e da cultura e sobre o desenvolvimento da crítica e do posicionamento diante das questões sociais. Logo, é importante refletir a respeito da colaboração que a Matemática tem a oferecer com vistas à formação da cidadania.
Nesse aspecto, a Matemática pode dar sua contribuição à formação do cidadão ao desenvolver metodologias que enfatizem a construção de estratégias, a comprovação e justificativa de resultados, a criatividade, a iniciativa pessoal, o trabalho coletivo e a autonomia advinda da confiança na própria capacidade para enfrentar desafios.
A escola deve estimular o crescimento coletivo e individual para a inserção de cada indivíduo no mundo das relações sociais.

O papel e a importância do professor

O papel e a importância do professor, através do tempo, sofreram muitas mudanças. O conhecimento sempre foi, como é ainda hoje, fonte de poder. Nas antigas civilizações esse poder era ligado ao sobrenatural e o conhecimento era detido nas mãos dos sacerdotes, que previam o futuro, as estações do ano, as enchentes e os eclipses. A transmissão do saber, assim como das tradições, se fazia oralmente. Mesmo depois da invenção da escrita, quando, de uma forma ou de outra, sobre papiros, folhas de vários tipos, peles de animais ou tabletes de argila, livros eram compostos, a figura do professor era indispensável e fundamental. Livros eram produzidos, mas era muito difícil reproduzi-los. O ensino, a instrução era algo que se fazia pela palavra falada. Daí a grande relevância do professor. Essa dependência do contato pessoal para a aquisição do conhecimento era obviamente um fator de limitação para a divulgação do mesmo, o que favorecia o caráter secreto da instrução a que nos referimos acima.
O ensino institucionalizado tem suas origens na Mesopotâmia, no Egito e, principalmente, na China, onde se inventou o papel e se criou o sistema de concursos para o ingresso no serviço público. Em todos esses casos, o ensino da Matemática estava subordinado ao interesse de administrar o Estado, manter o poder religioso e, muitas vezes, ambas estas coisas.
O professor era a figura central. Suas aulas eram sempre ditadas, às vezes anotadas pelos alunos, que deviam depois relê-las em voz alta, para que o professor verificasse se foram fielmente recebidas. Daí o nome “colégio”, dado ao lugar onde todos liam em conjunto. Assim eram lidos em voz alta, na Idade Média, os livros-texto, ditados para os alunos.
Bem antes disso, no Museu de Alexandria, muitos historiadores hoje creem que o texto de Euclides foi transmitido oralmente e copiado por muitos alunos sem que nunca tenha havido uma versão completa por ele escrita.
A bem da verdade, o hábito de ditar as aulas para que os alunos a copiem não desapareceu de todo. Ainda há muitos professores que o utilizam, hoje disfarçados pelo quadro-negro.
Se, entretanto, o professor perdeu para o livro impresso a exclusividade da transmissão do conhecimento e da tradição, inclusive por se tratar de um ser efêmero, em contraste com a longevidade do papel, por outro lado sua presença viva, sua experiência, sua possibilidade de responder perguntas, sugerir soluções, propor novas abordagens e, sobretudo, travar diálogos e fomentar discussões são aspectos que salientam a incompleteza da formação do autodidata. Por isso mesmo esta palavra carrega consigo dois significados contraditórios: é um elogio à perseverança e uma crítica às lacunas da formação.
Na verdade, cada um de nós é, numa certa medida, um autodidata. Há quem diga, com uma boa dose de razão, que não existe a mágica da transmissão direta do conhecimento do professor para o aluno. Para que este aprenda é preciso antes de tudo que tenha vontade, espírito aberto, dedicação e, sem dúvida, algum talento. E qual é então o papel do professor?
Acima de tudo, dentro do sistema atual de ensino em nossas escolas, o professor é principalmente um pacemaker. É ele quem dita o ritmo dos estudos. Em seguida, o professor deve ter a experiência necessária para salientar o essencial e menosprezar o supérfluo, ou seja, mostrar aos alunos quais são os personagens principais, quais são os argumentos essenciais, em contraposição com os elementos de mera circunstância ou as conclusões irrelevantes. O professor também deve provocar, instigar, pôr questões, propor problemas e, o que é de extrema importância, enxergar e exibir conexões entre temas matemáticos aparentemente independentes. Este é, em essência, o papel do professor, esta é a sua tarefa. O resto cabe ao aluno. Este é que tem de trabalhar, esforçar-se, suar a camisa (para usar o jargão do futebol). Cabe aqui a pequena história do nascimento da libélula.
Sentado à varanda de sua casa de campo, um homem assistiu ao nascimento de uma libélula e compadeceu-se do longo e extenuante esforço que ela fizera para libertar-se do casulo, onde entrara como lagarta. Mais tarde, diante da mesma situação, decidiu ajudar, abrindo um buraco no casulo e libertando o animal que, trôpego, após alguns passos desajeitados, sem conseguir sequer abrir as asas, nem mesmo respirar direito, estrebuchou e morreu. O esforço, que deveria ter feito para esgueirar-se pela estreita passagem, estimularia a circulação, faria funcionar seus órgãos. Sem isso, faleceu.
Dito isto, cabe a pergunta: existe um método ideal para ensinar Matemática?
A resposta mais simples é NÃO. Quer dizer, ideal mesmo, não. Existem porém algumas condições necessárias para se ser um bom professor. As condições de primeira ordem são três: gostar, amar, ter grande entusiasmo por Matemática, apreciar uma boa demonstração, ficar ligado durante horas, ou dias, num problema intrigante e desafiador, essas coisas constituem a primeira condição. A segunda é conhecer aquilo que se vai ensinar. Isto parece tão óbvio; como se pode pensar em ensinar algo que não se sabe? Mais precisamente, é necessário conhecer mais sobre o assunto do que aquilo que se vai ensinar. Do contrário, as ênfases serão postas nos lugares errados, respostas corretas dos alunos com base em argumentos aparentemente incorretos ficarão sem explicações e, principalmente, a segurança do professor, tão indispensável para que a classe se sinta confiante em sua liderança, fica prejudicada. A terceira condição é que o professor não somente goste de Matemática mas que goste também de ensiná-la. Isto implica, por exemplo, em colecionar problemas interessantes, procurar as soluções mais claras e elegantes dos mesmos, buscar as demonstrações mais simples, os exemplos mais atraentes e os métodos mais eficazes de efetuar os cálculos. Isto implica ainda em tentar descobrir quais as maiores dificuldades dos alunos, procurar ajudá-los a preencher lacunas prévias e, ao mesmo tempo, tratar com esmero e paciência os pontos mais sutis e delicados da matéria. Mas é preciso evitar o perigo apontado por Kepler no prefácio da sua “Astronomia Nova” e relembrado por Seifert e Threlfall: evitar tanto a exposição lacônica como as explicações superabundantes, pois a pessoa não enxerga quando a luz é insuficiente, mas também fica ofuscada quando a luz é excessiva. A experiência acumulada nas salas-de-aula é uma grande ajuda no sentido de transformar em ações concretas o desejo de ser um bom professor.
Resumindo: estas são as três condições necessárias de primeira ordem para o bom professor de Matemática:
  1. Amar a Matemática e ter grande entusiamo por ela;
  2. Conhecer bem aquilo que vai ensinar. Na verdade, conhecer um pouco mais do que o que vai ensinar;
  3. Gostar de ensinar e interessar-se pelos alunos.
Desses três princípios decorrem vários outros, que são as condições de segunda ordem. (É bem conhecido que toda lista abundante de condições necessárias termina por tornar-se um rol de condições suficientes.) Mencionemos algumas.
  1. Esforçar-se para ser um bom comunicador: falar alto e claramente, escrever de modo ordenado e com boa caligrafia, evitar ficar todo o tempo de frente para o quadro-negro e de costas para a turma;
  2. Ser gentil e paciente com os alunos; não humilhá-los;
  3. Fazer com que todos trabalhem. Uma aprendizagem passiva é, na melhor das hipóteses, efêmera: “easy come, easy go”.
São muitas e variadas as atitudes e numerosos os hábitos do professor que resultam das três condições necessárias acima mencionadas. Por exemplo: o costume de preceder o estudo de cada assunto novo pela apresentação de um problema cuja solução utilize a matéria que vai ser tratada; sempre que possível um problema que se refira a situações da vida real ou a outras áreas da Matemática, dando assim ocasião para o estabelecimento de conexões entre temas aparentemente independentes.
O dia-a-dia das aulas, o contato com os alunos, as boas leituras, a troca de experiências com os colegas são de grande valia para a concretização do desejo de ser um bom professor.
Estamos falando aqui de táticas. Mas é preciso ter em conta também a estratégia. O ensino bem equilibrado da Matemática deve ser montado sobre o tripé formado por suas componentes básicas: a conceituação, a manipulação e as aplicações. É claro que, ao prosseguir seus estudos, do ensino fundamental para o médio e depois para o superior, o aluno vai deparar-se com a predominância de uma ou duas dessas componentes. Nos primeiros quatro anos de escola, a manipulação sobressai-se. Nos quatro anos seguintes, ele já começa a ter maturidade suficiente para assimilar doses um pouco maiores de conceituação e disporá de matéria suficiente para abordar, embora timidamente, algumas aplicações interessantes. Nos três últimos anos da escola os alunos (geralmente entre 15 e 17 anos) já podem assimilar as três componentes com a mesma ênfase. Quanto ao ensino superior, os interesses, os objetivos e as necessidades profissionais se diversificam a tal ponto que fica difícil estabelecer regras gerais. Mas, em qualquer caso, deve-se sempre ressaltar que, mesmo para aqueles que visam ter a Matemática como instrumento de aplicação, a conceituação é mais importante do que a manipulação.
Ao colocar-se, como deve, no lugar do aluno a fim de melhor organizar seu projeto didático, o professor não pode deixar de reviver as reações de seus colegas estudantes no passado, compará-las com as de seus alunos de hoje e reconhecer (um tanto relutantemente) que Matemática é, para muitos, uma matéria difícil de aprender e consequentemente (agora com mais ênfase) concluir que mais difícil ainda é ensiná-la. Sempre foi assim. É bem conhecido o episódio do rei Ptolomeu indagando a Euclides se não havia um modo mais simples de aprender Geometria e ouvindo como resposta que não havia caminhos reais nesta matéria. A história é provavelmente apócrifa, e é bem melhor que o seja, pois assim mostra que houve necessidade de inventá-la, a fim de ilustrar quão árduo é o labor de aprender, como também de ensinar Matemática.
Há outros indícios históricos que se referem às agruras dos alunos e professores. Por exemplo, algumas proposições de Geometria eram conhecidas como “pons asinorum”, uma das quais era o Teorema, devido a Tales, de que os ângulos da base de um triângulo isósceles são iguais. Pons asinorum, ou ponte dos burros, é um tipo rústico de ponte sobre um regato, formado por finos troncos de madeira, cilíndricos e adjacentes, a qual pode facilmente ser percorrida por uma pessoa (ou um pequeno veículo) mas não por um asno, que teria suas patas presas entre os troncos. (Existem em todas as partes da Matemática algumas noções cruciais que requerem mais atenção e esforço para entendê-las. Este é o caso, por exemplo, da continuidade e da convergência uniformes em Análise.)
Outra manifestação da crença de que Matemática é difícil se encontra na ideia, que teve um considerável número de seguidores no século dezenove, de que havia no cérebro humano uma protuberância, chamada a “bossa da Matemática”, cujo maior ou menor volume era responsável pelo êxito ou fracasso na aprendizagem dessa matéria. Assim como a hipótese de Lombroso, que caracterizava a propensão ao crime por meio do formato cerebral, também a ideia da bossa da Matemática teve vida efêmera. Mas o mero fato de que um dia foi considerada já diz algo sobre o difícil que é e o medo que causa em muitos o estudo da Matemática. Para encerrar esta lista de exemplos, acrescento um trecho do grande matemático francês Henri Poincaré, publicado há mais de 100 anos.
“Um fato nos deveria causar admiração, se não estivéssemos tão acostumados com ele: como acontece que existam pessoas que não compreendem Matemática? Se a Matemática não invoca nada a não ser regras da Lógica, aquelas que são aceitas por todos os indivíduos normais, e a evidência das mesmas se baseia em princípios que são comuns a todos os seres humanos, os quais ninguém pode negar sem parecer tolo, como acontece que existam tantas pessoas que são totalmente resistentes à Matemática?
Que nem todo mundo seja capaz de inventar não é mistério algum. Que nem todo mundo possa guardar na memória uma demonstração que certa vez aprendeu também se compreende. Mas que nem todos possam entender um argumento matemático quando nós o apresentamos, isto é o que mais surpreende. Além do mais, aqueles que não são capazes de seguir esse raciocínio a não ser com grande dificuldade formam a vasta maioria: isto é inegável e a experiência dos professores secundários certamente não me contradiz.”
Poincaré, ao escrever isto, estava começando a tratar do processo mental que conduz à descoberta matemática. Ele lança a provocante pergunta e logo deixa o caso no ar, sem voltar a ele depois. Não apenas provocante, a pergunta é crucial e respondê-la, mesmo que parcialmente, será uma forma de oferecer uma contribuição para melhorar a qualidade do ensino, de modo a alcançar um número maior de pessoas que conseguem entender o raciocínio matemático.
Se tivesse que continuar nessa veia, Poincaré provavelmente teria dito que a Matemática, pelo menos aquela a que ele se referia no texto, lida com noções abstratas, trata de relações entre objetos que existem apenas em nossa imaginação e que, na melhor das hipóteses, são apenas modelos ideais de coisas e situações reais. Os objetos matemáticos que modelam tais coisas e situações, por serem abstratos e captarem apenas alguns (preferivelmente os mais relevantes) aspectos dessas situações reais são por isso aplicáveis numa grande variedade de casos que para os matemáticos são análogos, mas que à primeira vista são, aos olhos do leigo, inteiramente distintos. A capacidade de imaginar essas abstrações, lidar com elas como se fossem reais, requer talento especial e treinamento adequado, os quais constituem as principais diferenças entre o entender e o não entender Matemática. Mas talento inato e treinamento específico como condições prévias para o êxito não são exclusivos da Matemática. Valem para inúmeras outras atividades como esportes e artes. A diferença é que essas outras atividades, embora representem valores humanos e sociais respeitáveis, não são tão essenciais para o progresso, o conforto, o bem-estar e a sobrevivência como a Matemática.
É importante, porém, que o professor se conscientize de que a Matemática que é ensinada durante os sete ou oito primeiros anos da escola não requer nenhum pendor ou talento especial para ser aprendida, não mais do que nenhuma das outras disciplinas que são estudadas nessa idade. Certamente, mesmo aí, a Matemática exige mais atenção (um pequeno erro pode afetar grandemente o resultado, o que não ocorre nos outros estudos). Também a Matemática tem essa característica cumulativa: os assuntos dependem muito dos anteriores (não pode multiplicar quem não sabe somar), mas isto pode ser considerado como vantajoso para quem se empenha em exercitar-se. (É bem conhecida a história do estudante que só aprendeu Álgebra quando estudou Trigonometria, que só aprendeu Trigonometria quando estudou derivadas e integrais, que só aprendeu estas últimas quando estudou equações diferenciais etc.)
Deve-se entretanto observar, com toda a ênfase, que as dificuldades adicionais da Matemática em relação às outras disciplinas dos oito primeiros anos de escola não requerem talento especial para serem vencidas. Dependem, sim, de certos hábitos e atitudes como empenho, trabalho, dedicação, cuidado, atenção etc. Tais hábitos e atitudes são essenciais para o bom desempenho de quaisquer atividades na sociedade, de modo que, ao exigi-las dos estudantes, a Matemática está contribuindo para formar melhores cidadãos, mesmo que eles não venham a fazer, posteriormente, uso da maior parte das coisas matemáticas que estudaram na escola.
Depois da oitava série (nono ano), realmente o estudante deve passar a estudar Matemática num nível maior do que antes e aí creio que cabe mais claramente a observação de Poincaré. A conclusão mais óbvia é que haja, nesse ponto, uma nítida separação entre os tipos de escola, como é feito em alguns países da Europa. E, para aqueles que se destinam às carreiras, digamos “técnicas” na Universidade, é tarefa do professor amenizar o aspecto abstrato das teorias matemáticas, lembrando sempre o tripé a que me referi acima, pois dos 15 aos 17 anos o jovem já tem condições intelectuais e treinamento matemático suficiente para dominar situações “contextuais” em que as três componentes do ensino matemático podem aparecer com o mesmo grau de relevância.
Quanto ao ensino a nível universitário, não há muito o que acrescentar às observações acima feitas, salvo para dizer que uma atenção toda especial deve ser dada à formação dos futuros professores, para que possam dar aos seus alunos uma dedicação e um treinamento melhor do que eles próprios receberam.

[Contato: macolins@gmail.com]

Nenhum comentário:

Postar um comentário