Matemática e
construção da cidadania
(Artigo
organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da
Rede Estadual de Ensino do Maranhão)
Introdução
A Matemática é
uma ciência viva, não apenas no cotidiano dos cidadãos, mas também
nas universidades e centros de pesquisas, onde se verifica, hoje, uma
impressionante produção de novos conhecimentos que, a par de seu
valor intrínseco, de natureza lógica, têm sido instrumentos úteis
na solução de problemas científicos e tecnológicos da maior
importância.
A Matemática
caracteriza-se como uma forma de compreender e atuar no mundo. O
conhecimento gerado nessa área do saber é visto como fruto da
construção humana na sua interação constante com o contexto
natural, social e cultural.
Assim, falar em
formação básica para a cidadania significa refletir sobre as
condições humanas de sobrevivência, sobre a inserção das pessoas
no mundo do trabalho, das relações sociais e da cultura e sobre o
desenvolvimento da crítica e do posicionamento diante das questões
sociais. Logo, é importante refletir a respeito da colaboração que
a Matemática tem a oferecer com vistas à formação da cidadania.
Nesse aspecto, a
Matemática pode dar sua contribuição à formação do cidadão ao
desenvolver metodologias que enfatizem a construção de estratégias,
a comprovação e justificativa de resultados, a criatividade, a
iniciativa pessoal, o trabalho coletivo e a autonomia advinda da
confiança na própria capacidade para enfrentar desafios.
A escola deve
estimular o crescimento coletivo e individual para a inserção de
cada indivíduo no mundo das relações sociais.
O papel e a
importância do professor
O papel e a
importância do professor, através do tempo, sofreram muitas
mudanças. O conhecimento sempre foi, como é ainda hoje, fonte de
poder. Nas antigas civilizações esse poder era ligado ao
sobrenatural e o conhecimento era detido nas mãos dos sacerdotes,
que previam o futuro, as estações do ano, as enchentes e os
eclipses. A transmissão do saber, assim como das tradições, se
fazia oralmente. Mesmo depois da invenção da escrita, quando, de
uma forma ou de outra, sobre papiros, folhas de vários tipos, peles
de animais ou tabletes de argila, livros eram compostos, a figura do
professor era indispensável e fundamental. Livros eram produzidos,
mas era muito difícil reproduzi-los. O ensino, a instrução era
algo que se fazia pela palavra falada. Daí a grande relevância do
professor. Essa dependência do contato pessoal para a aquisição do
conhecimento era obviamente um fator de limitação para a divulgação
do mesmo, o que favorecia o caráter secreto da instrução a que nos
referimos acima.
O ensino
institucionalizado tem suas origens na Mesopotâmia, no Egito e,
principalmente, na China, onde se inventou o papel e se criou o
sistema de concursos para o ingresso no serviço público. Em todos
esses casos, o ensino da Matemática estava subordinado ao interesse
de administrar o Estado, manter o poder religioso e, muitas vezes,
ambas estas coisas.
O professor era a
figura central. Suas aulas eram sempre ditadas, às vezes anotadas
pelos alunos, que deviam depois relê-las em voz alta, para que o
professor verificasse se foram fielmente recebidas. Daí o nome
“colégio”, dado ao lugar onde todos liam em conjunto. Assim eram
lidos em voz alta, na Idade Média, os livros-texto, ditados para os
alunos.
Bem antes disso,
no Museu de Alexandria, muitos historiadores hoje creem que o texto
de Euclides foi transmitido oralmente e copiado por muitos alunos sem
que nunca tenha havido uma versão completa por ele escrita.
A bem da verdade,
o hábito de ditar as aulas para que os alunos a copiem não
desapareceu de todo. Ainda há muitos professores que o utilizam,
hoje disfarçados pelo quadro-negro.
Se, entretanto, o
professor perdeu para o livro impresso a exclusividade da transmissão
do conhecimento e da tradição, inclusive por se tratar de um ser
efêmero, em contraste com a longevidade do papel, por outro lado sua
presença viva, sua experiência, sua possibilidade de responder
perguntas, sugerir soluções, propor novas abordagens e, sobretudo,
travar diálogos e fomentar discussões são aspectos que salientam a
incompleteza da formação do autodidata. Por isso mesmo esta palavra
carrega consigo dois significados contraditórios: é um elogio à
perseverança e uma crítica às lacunas da formação.
Na verdade, cada
um de nós é, numa certa medida, um autodidata. Há quem diga, com
uma boa dose de razão, que não existe a mágica da transmissão
direta do conhecimento do professor para o aluno. Para que este
aprenda é preciso antes de tudo que tenha vontade, espírito aberto,
dedicação e, sem dúvida, algum talento. E qual é então o papel
do professor?
Acima
de tudo, dentro do sistema atual de ensino em nossas escolas, o
professor é principalmente um pacemaker.
É ele quem dita o ritmo dos estudos. Em seguida, o professor deve
ter a experiência necessária para salientar o essencial e
menosprezar o supérfluo, ou seja, mostrar aos alunos quais são os
personagens principais, quais são os argumentos essenciais, em
contraposição com os elementos de mera circunstância ou as
conclusões irrelevantes. O professor também deve provocar,
instigar, pôr questões, propor problemas e, o que é de extrema
importância, enxergar e exibir conexões entre temas matemáticos
aparentemente independentes. Este é, em essência, o papel do
professor, esta é a sua tarefa. O resto cabe ao aluno. Este é que
tem de trabalhar, esforçar-se, suar a camisa (para usar o jargão do
futebol). Cabe aqui a pequena história do nascimento da libélula.
Sentado
à varanda de sua casa de campo, um homem assistiu ao nascimento de
uma libélula e compadeceu-se do longo e extenuante esforço que ela
fizera para libertar-se do casulo, onde entrara como lagarta. Mais
tarde, diante da mesma situação, decidiu ajudar, abrindo um buraco
no casulo e libertando o animal que, trôpego, após alguns passos
desajeitados, sem conseguir sequer abrir as asas, nem mesmo respirar
direito, estrebuchou e morreu. O esforço, que deveria ter feito para
esgueirar-se pela estreita passagem, estimularia a circulação,
faria funcionar seus órgãos. Sem isso, faleceu.
Dito isto, cabe a
pergunta: existe um método ideal para ensinar Matemática?
A resposta mais
simples é NÃO. Quer dizer, ideal mesmo, não. Existem porém
algumas condições necessárias para se ser um bom professor. As
condições de primeira ordem são três: gostar, amar, ter grande
entusiasmo por Matemática, apreciar uma boa demonstração, ficar
ligado durante horas, ou dias, num problema intrigante e desafiador,
essas coisas constituem a primeira condição. A segunda é conhecer
aquilo que se vai ensinar. Isto parece tão óbvio; como se pode
pensar em ensinar algo que não se sabe? Mais precisamente, é
necessário conhecer mais sobre o assunto do que aquilo que se vai
ensinar. Do contrário, as ênfases serão postas nos lugares
errados, respostas corretas dos alunos com base em argumentos
aparentemente incorretos ficarão sem explicações e,
principalmente, a segurança do professor, tão indispensável para
que a classe se sinta confiante em sua liderança, fica prejudicada.
A terceira condição é que o professor não somente goste de
Matemática mas que goste também de ensiná-la. Isto implica, por
exemplo, em colecionar problemas interessantes, procurar as soluções
mais claras e elegantes dos mesmos, buscar as demonstrações mais
simples, os exemplos mais atraentes e os métodos mais eficazes de
efetuar os cálculos. Isto implica ainda em tentar descobrir quais as
maiores dificuldades dos alunos, procurar ajudá-los a preencher
lacunas prévias e, ao mesmo tempo, tratar com esmero e paciência os
pontos mais sutis e delicados da matéria. Mas é preciso evitar o
perigo apontado por Kepler no prefácio da sua “Astronomia Nova”
e relembrado por Seifert e Threlfall: evitar tanto a exposição
lacônica como as explicações superabundantes, pois a pessoa não
enxerga quando a luz é insuficiente, mas também fica ofuscada
quando a luz é excessiva. A experiência acumulada nas salas-de-aula
é uma grande ajuda no sentido de transformar em ações concretas o
desejo de ser um bom professor.
Resumindo: estas
são as três condições necessárias de primeira ordem para o bom
professor de Matemática:
- Amar a Matemática e ter grande entusiamo por ela;
- Conhecer bem aquilo que vai ensinar. Na verdade, conhecer um pouco mais do que o que vai ensinar;
- Gostar de ensinar e interessar-se pelos alunos.
Desses três
princípios decorrem vários outros, que são as condições de
segunda ordem. (É bem conhecido que toda lista abundante de
condições necessárias termina por tornar-se um rol de condições
suficientes.) Mencionemos algumas.
- Esforçar-se para ser um bom comunicador: falar alto e claramente, escrever de modo ordenado e com boa caligrafia, evitar ficar todo o tempo de frente para o quadro-negro e de costas para a turma;
- Ser gentil e paciente com os alunos; não humilhá-los;
- Fazer com que todos trabalhem. Uma aprendizagem passiva é, na melhor das hipóteses, efêmera: “easy come, easy go”.
São muitas e
variadas as atitudes e numerosos os hábitos do professor que
resultam das três condições necessárias acima mencionadas. Por
exemplo: o costume de preceder o estudo de cada assunto novo pela
apresentação de um problema cuja solução utilize a matéria que
vai ser tratada; sempre que possível um problema que se refira a
situações da vida real ou a outras áreas da Matemática, dando
assim ocasião para o estabelecimento de conexões entre temas
aparentemente independentes.
O dia-a-dia das
aulas, o contato com os alunos, as boas leituras, a troca de
experiências com os colegas são de grande valia para a
concretização do desejo de ser um bom professor.
Estamos falando
aqui de táticas. Mas é preciso ter em conta também a estratégia.
O ensino bem equilibrado da Matemática deve ser montado sobre o
tripé formado por suas componentes básicas: a conceituação, a
manipulação e as aplicações. É claro que, ao prosseguir seus
estudos, do ensino fundamental para o médio e depois para o
superior, o aluno vai deparar-se com a predominância de uma ou duas
dessas componentes. Nos primeiros quatro anos de escola, a
manipulação sobressai-se. Nos quatro anos seguintes, ele já começa
a ter maturidade suficiente para assimilar doses um pouco maiores de
conceituação e disporá de matéria suficiente para abordar, embora
timidamente, algumas aplicações interessantes. Nos três últimos
anos da escola os alunos (geralmente entre 15 e 17 anos) já podem
assimilar as três componentes com a mesma ênfase. Quanto ao ensino
superior, os interesses, os objetivos e as necessidades profissionais
se diversificam a tal ponto que fica difícil estabelecer regras
gerais. Mas, em qualquer caso, deve-se sempre ressaltar que, mesmo
para aqueles que visam ter a Matemática como instrumento de
aplicação, a conceituação é mais importante do que a
manipulação.
Ao colocar-se,
como deve, no lugar do aluno a fim de melhor organizar seu projeto
didático, o professor não pode deixar de reviver as reações de
seus colegas estudantes no passado, compará-las com as de seus
alunos de hoje e reconhecer (um tanto relutantemente) que Matemática
é, para muitos, uma matéria difícil de aprender e consequentemente
(agora com mais ênfase) concluir que mais difícil ainda é
ensiná-la. Sempre foi assim. É bem conhecido o episódio do rei
Ptolomeu indagando a Euclides se não havia um modo mais simples de
aprender Geometria e ouvindo como resposta que não havia caminhos
reais nesta matéria. A história é provavelmente apócrifa, e é
bem melhor que o seja, pois assim mostra que houve necessidade de
inventá-la, a fim de ilustrar quão árduo é o labor de aprender,
como também de ensinar Matemática.
Há outros
indícios históricos que se referem às agruras dos alunos e
professores. Por exemplo, algumas proposições de Geometria eram
conhecidas como “pons asinorum”, uma das quais era o Teorema,
devido a Tales, de que os ângulos da base de um triângulo isósceles
são iguais. Pons asinorum, ou ponte dos burros, é um tipo rústico
de ponte sobre um regato, formado por finos troncos de madeira,
cilíndricos e adjacentes, a qual pode facilmente ser percorrida por
uma pessoa (ou um pequeno veículo) mas não por um asno, que teria
suas patas presas entre os troncos. (Existem em todas as partes da
Matemática algumas noções cruciais que requerem mais atenção e
esforço para entendê-las. Este é o caso, por exemplo, da
continuidade e da convergência uniformes em Análise.)
Outra
manifestação da crença de que Matemática é difícil se encontra
na ideia, que teve um considerável número de seguidores no século
dezenove, de que havia no cérebro humano uma protuberância, chamada
a “bossa da Matemática”, cujo maior ou menor volume era
responsável pelo êxito ou fracasso na aprendizagem dessa matéria.
Assim como a hipótese de Lombroso, que caracterizava a propensão ao
crime por meio do formato cerebral, também a ideia da bossa da
Matemática teve vida efêmera. Mas o mero fato de que um dia foi
considerada já diz algo sobre o difícil que é e o medo que causa
em muitos o estudo da Matemática. Para encerrar esta lista de
exemplos, acrescento um trecho do grande matemático francês Henri
Poincaré, publicado há mais de 100 anos.
“Um
fato nos deveria causar admiração, se não estivéssemos tão
acostumados com ele: como acontece que existam pessoas que não
compreendem Matemática? Se a Matemática não invoca nada a não ser
regras da Lógica, aquelas que são aceitas por todos os indivíduos
normais, e a evidência das mesmas se baseia em princípios que são
comuns a todos os seres humanos, os quais ninguém pode negar sem
parecer tolo, como acontece que existam tantas pessoas que são
totalmente resistentes à Matemática?
Que
nem todo mundo seja capaz de inventar não é mistério algum. Que
nem todo mundo possa guardar na memória uma demonstração que certa
vez aprendeu também se compreende. Mas que nem todos possam entender
um argumento matemático quando nós o apresentamos, isto é o que
mais surpreende. Além do mais, aqueles que não são capazes de
seguir esse raciocínio a não ser com grande dificuldade formam a
vasta maioria: isto é inegável e a experiência dos professores
secundários certamente não me contradiz.”
Poincaré, ao
escrever isto, estava começando a tratar do processo mental que
conduz à descoberta matemática. Ele lança a provocante pergunta e
logo deixa o caso no ar, sem voltar a ele depois. Não apenas
provocante, a pergunta é crucial e respondê-la, mesmo que
parcialmente, será uma forma de oferecer uma contribuição para
melhorar a qualidade do ensino, de modo a alcançar um número maior
de pessoas que conseguem entender o raciocínio matemático.
Se tivesse que
continuar nessa veia, Poincaré provavelmente teria dito que a
Matemática, pelo menos aquela a que ele se referia no texto, lida
com noções abstratas, trata de relações entre objetos que existem
apenas em nossa imaginação e que, na melhor das hipóteses, são
apenas modelos ideais de coisas e situações reais. Os objetos
matemáticos que modelam tais coisas e situações, por serem
abstratos e captarem apenas alguns (preferivelmente os mais
relevantes) aspectos dessas situações reais são por isso
aplicáveis numa grande variedade de casos que para os matemáticos
são análogos, mas que à primeira vista são, aos olhos do leigo,
inteiramente distintos. A capacidade de imaginar essas abstrações,
lidar com elas como se fossem reais, requer talento especial e
treinamento adequado, os quais constituem as principais diferenças
entre o entender e o não entender Matemática. Mas talento inato e
treinamento específico como condições prévias para o êxito não
são exclusivos da Matemática. Valem para inúmeras outras
atividades como esportes e artes. A diferença é que essas outras
atividades, embora representem valores humanos e sociais
respeitáveis, não são tão essenciais para o progresso, o
conforto, o bem-estar e a sobrevivência como a Matemática.
É importante,
porém, que o professor se conscientize de que a Matemática que é
ensinada durante os sete ou oito primeiros anos da escola não requer
nenhum pendor ou talento especial para ser aprendida, não mais do
que nenhuma das outras disciplinas que são estudadas nessa idade.
Certamente, mesmo aí, a Matemática exige mais atenção (um pequeno
erro pode afetar grandemente o resultado, o que não ocorre nos
outros estudos). Também a Matemática tem essa característica
cumulativa: os assuntos dependem muito dos anteriores (não pode
multiplicar quem não sabe somar), mas isto pode ser considerado como
vantajoso para quem se empenha em exercitar-se. (É bem conhecida a
história do estudante que só aprendeu Álgebra quando estudou
Trigonometria, que só aprendeu Trigonometria quando estudou
derivadas e integrais, que só aprendeu estas últimas quando estudou
equações diferenciais etc.)
Deve-se
entretanto observar, com toda a ênfase, que as dificuldades
adicionais da Matemática em relação às outras disciplinas dos
oito primeiros anos de escola não requerem talento especial para
serem vencidas. Dependem, sim, de certos hábitos e atitudes como
empenho, trabalho, dedicação, cuidado, atenção etc. Tais hábitos
e atitudes são essenciais para o bom desempenho de quaisquer
atividades na sociedade, de modo que, ao exigi-las dos estudantes, a
Matemática está contribuindo para formar melhores cidadãos, mesmo
que eles não venham a fazer, posteriormente, uso da maior parte das
coisas matemáticas que estudaram na escola.
Depois da oitava
série (nono ano), realmente o estudante deve passar a estudar
Matemática num nível maior do que antes e aí creio que cabe mais
claramente a observação de Poincaré. A conclusão mais óbvia é
que haja, nesse ponto, uma nítida separação entre os tipos de
escola, como é feito em alguns países da Europa. E, para aqueles
que se destinam às carreiras, digamos “técnicas” na
Universidade, é tarefa do professor amenizar o aspecto abstrato das
teorias matemáticas, lembrando sempre o tripé a que me referi
acima, pois dos 15 aos 17 anos o jovem já tem condições
intelectuais e treinamento matemático suficiente para dominar
situações “contextuais” em que as três componentes do ensino
matemático podem aparecer com o mesmo grau de relevância.
Quanto ao ensino
a nível universitário, não há muito o que acrescentar às
observações acima feitas, salvo para dizer que uma atenção toda
especial deve ser dada à formação dos futuros professores, para
que possam dar aos seus alunos uma dedicação e um treinamento
melhor do que eles próprios receberam.
[Contato:
macolins@gmail.com]
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