Encontros
e desencontros entre Lógica e Matemática
(Artigo
organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da
Rede Estadual de Ensino do Maranhão)
“Por
trás do raciocínio matemático há regras de raciocínio lógico,
mas claramente a Matemática não é a única forma de favorecer
alguém a pensar logicamente”, resume o matemático e professor do
Departamento de Filosofia da Unicamp Marcelo Coniglio. Para ele, as
pessoas frequentemente se baseiam no senso comum quando dizem que o
estudo da Matemática favorece o raciocínio lógico. Faz sentido,
sim, mas não é condição inescapável. “Uma pessoa pode ser
muito boa em álgebra e não tem porque ser boa em geometria
diferencial ou probabilidades. Por outro lado, um matemático pode (e
em geral costuma) desconhecer as ideias e técnicas da lógica
contemporânea. Cada área requer talentos e intuições diferentes”,
explica.
A Matemática
pode não ser condição única para engatilhar o raciocínio lógico,
mas certamente colabora. Luiz Henrique Silvestrini, professor da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp),
atesta que é possível, por exemplo, perceber as diversas
possibilidades de uma prova em uma demonstração usando o rigor
matemático. “Posso olhar pra uma demonstração e ela é feita por
contraposição. E aí se pede para provar se de A
se chega a B”
então, pode-se pensar, “se B não é o caso, chego a não-A.
É possível de demonstrar? Sim”. Ao chegar numa prova dessas, o
estudante vai ter todos esses tipos de conexões entre as formas e
definir o que é uma condicional, o que é uma contraposição e daí
ele leva isso para a linguagem. Então, em geral, ao fazer um
discurso, ao fazer um argumento, ele vai ter mais rigor na hora de
fazer a estrutura e, assim, a forma de seu argumento vai ser muito
melhor.
No entanto, falar
das confluências e divergências entre Lógica e Matemática é uma
tarefa bastante complexa (e estimulante), que envolve muitas
questões, inclusive filosóficas, mas é sempre possível encontrar
um ponto de partida.
A Lógica
como campo de estudo
Antes de
relacionar as duas disciplinas, é preciso lembrar que, como domínio
do saber, a Lógica está um pouco distante do que consideramos como
tal no senso comum. Distante, mas não necessariamente lhe fazendo
oposição: a disciplina nasce na Grécia, com Aristóteles (século
IV a.C.). Segundo Marilena Chauí, em seu livro Convite
à filosofia (Ática,
2008), o filósofo grego a considerava como um instrumento para as
ciências. Grosso modo, a Lógica aristotélica é conhecida como
Lógica Clássica e sua principal manifestação é a possibilidade
de se fazer inferências ou conclusões a partir de duas ou mais
premissas que são não-contraditórias entre si: se A
é igual a B
(premissa maior) e B
é igual a C
(premissa menor), então A
é igual a C
(conclusão), por exemplo. Marilena explica que nas premissas existem
termos extremos (no sentido de serem distantes entre si como os
extremos de uma corda), e um termo médio, que liga os dois. No caso
do exemplo anterior, A
e C
seriam os extremos, e B,
o termo médio,
fazendo a ponte entre eles. Essa ponte, segundo a autora, é
extremamente importante porque dá a inferência ou dedução e sem
ela não há raciocínio nem demonstração. Por isso, a arte da
Lógica consiste em saber encontrar o termo médio que ligará os
extremos e permitirá chegar à conclusão.
Outra
característica básica das premissas de um raciocínio na Lógica
Clássica, apontada por Chauí, é o fato de serem regidas por três
princípios fundamentais: “o princípio de identidade
(um
ser é sempre idêntico a si mesmo), o princípio da
não-contradição (é
impossível que um ser seja e não seja idêntico a si mesmo ao mesmo
tempo e na mesma relação) e o princípio do terceiro
excluído (dadas
duas proposições com o mesmo sujeito e o mesmo predicado, uma
afirmativa e outra negativa, uma delas é necessariamente verdadeira
e a outra necessariamente falsa)”. A partir daí definem-se as
conclusões que valem como verdade em um determinado sistema de
proposições (que precisam seguir certas regras para demonstrar sua
validade).
A essência que
perpassa a lógica clássica não se encerra apenas nessas reduções,
mas tem por objetivo principal demonstrar a validade de determinados
argumentos e refutar falácias. No pensamento contemporâneo, no
entanto, não é mais possível reduzir a disciplina a termos de
coerência entre premissas e conclusões, embora esta noção possa
ser um ponto de partida, de acordo com o matemático Luiz Henrique
Silvestrini. Segundo ele, o campo é tão vasto “que um lógico não
se arriscaria a dar uma definição formal, ampla, que abranja com
rigor o domínio atual do campo”. Além de não poder ser reduzida
a um sistema de inferências, a lógica também não pode ser
definida como estudo do raciocínio. Como lembra o professor de
Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Décio
Krause, a disciplina é bem mais que isso. “Ela lida com temas
extremamente complicados, como a teoria dos modelos, computabilidade,
fundamentos da teoria dos conjuntos, aplicações à ciência de
maneira geral. É uma disciplina amplíssima em que o estudo do
raciocínio é apenas uma parte extremamente útil para a retórica e
para a teoria do direito, por exemplo. Mas é apenas uma parte”.
Um detalhe
interessante, como lembra Krause, é que atualmente “não existe a
lógica. Existe uma infinidade de lógicas diferentes que não são
compatíveis entre si. Há uma pluralidade de sistemas lógicos cuja
utilização/aplicação tem uma enorme variedade: linguística,
psicanálise, fundamentos da ciência e da Física, Ciência da
Computação, Matemática, e por aí vai”. Uma dessas diferentes
lógicas é a paraconsistente, que teve como seu principal
desenvolvedor o matemático, professor de Lógica e Matemática da
Universidade de São Paulo (USP) e professor emérito do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) Newton da Costa.
Luiz Henrique
Silvestrini, que estuda a teoria proposta pelo professor Newton,
explica que ela lida com o conceito de quase-verdade e consegue
abrigar contradições em seus sistemas, algo que invalida, ou
trivializa, os silogismos baseados na lógica clássica. “O que a
lógica paraconsistente faz é rejeitar e não necessariamente negar
o princípio do terceiro excluído. Comporta contradições, que são
ocorrências normais na ciência”. Ele acrescenta que “há a
teoria da quase-verdade, que diz que algo pode ser quase verdadeiro
em algum sentido. A verdade seria um 'ponto final do conhecimento',
mas esse ponto final é quase inatingível. Sempre se tem um
conhecimento parcial sobre algum campo ou teoria”. Um exemplo é a
coexistência das físicas newtoniana e quântica em um mesmo campo
de estudo: elas são válidas para certas condições e contextos que
diferem entre si; por isso é tão difícil elaborar uma teoria que
unifique as duas e consiga demonstrar sua validade, por exemplo.
Por falar em
unificação de teorias, o esforço em se colocar tudo em uma caixa
só não existe apenas na Física (com a teoria das cordas, por
exemplo). David Hilbert (1862-1943), que, como diz Silvestrini,
“colocou o mundo da Matemática de cabeça para baixo” também
fez suas tentativas, sempre se questionando sobre a possibilidade de
haver uma teoria que descrevesse toda a Matemática. Mas aí vieram
Kurt Gödel e Alan Turing (cujo centenário de nascimento se
comemorou este ano), o primeiro com a teoria da incompletude e o
outro com a teoria da parada. E assim sacudiram o que já estava de
ponta-cabeça: uma das implicações do teorema de Gödel é a
afirmação de que “no interior de qualquer sistema formal que
contenha a aritmética (que é o b-a-ba da Matemática) não se pode
provar que um sistema em questão subjacente esteja isento de
contradições”, conta o professor da Unesp. Ou seja, sob esta
concepção, não há como esgotar teorias por meio de axiomas ou
leis, o que implica que a Matemática é inesgotável por não
existir um sistema de regras que consiga contornar todas
as
verdades que uma teoria pode gerar. Já o problema na parada, de
Turing, diz que não existe um algoritmo que permita decidir, para um
programa p
(qualquer programa), se ele vai parar ou não, se ele chega ao fim ou
não, trazendo à luz o problema da indecidibilidade. “Assim, eles
colocam o questionamento de Hilbert, sobre uma teoria que descrevesse
toda a Matemática, em xeque”, explica Silvestrini.
Lógica e
Matemática
Mas as incursões
entre Matemática e Lógica vão bastante além da elaboração de
teoremas logicamente válidos e matematicamente consistentes. Para o
professor Newton da Costa, em seu livro Ensaio
sobre os fundamentos da lógica (Hucitec,
2008), as disciplinas se relacionam de maneira profunda tanto por
seus objetivos quanto por seus métodos. Elas se aproximam “por
causa do uso que ambas fazem do pensamento axiomático (formado por
leis que regem um sistema) e da formalização (linguagem de
símbolos)”. O professor da Unesp e membro do grupo de apoio do
Centro de Lógica e Epistemologia (CLE) da Unicamp Hércules Feitosa
diz que essa aproximação se deu principalmente no século XIX com
os estudos de Gottlob Frege (1848-1925), que tentou usar a lógica
para fazer uma fundamentação da Matemática, para delimitar o que
é, saber como se desenvolve e provar que seus sistemas estão livres
de contradições. “Então muitos estudos foram desenvolvidos a
partir daí, a interface entre lógica e Matemática ficou mais
hermética e por isso houve certo distanciamento das outras
disciplinas”.
No entanto,
diferentemente do que diziam Bertrand Russell (1872-1970) e Frege, a
Matemática não se reduz à lógica, já que ela abrange aspectos de
inferência que não são redutíveis apenas aos cálculos
matemáticos, e muitos problemas que investiga envolvem natureza
filosófica. Newton da Costa constata que “a lógica não preexiste
à Matemática e, por isso mesmo, não é seu fundamento.
Precisamente o oposto se dá: a lógica nada mais é do que a
codificação das regularidades que se podem constatar no exercício
da atividade construtiva do matemático”, sendo que a lógica,
nesse sentido, se liga mais à linguagem (de uso corrente, como
língua), enquanto a Matemática, não. O professor lembra que, para
o filósofo e matemático holandês Luitzen Brouwer (1881-1966), a
linguagem “serve apenas de veículo um tanto impreciso das verdades
construídas pelo matemático”.
Matemática
e raciocínio lógico
Já que a lógica
não se reduz à Matemática e vice-versa, as duas podem se combinar,
ainda, para aprimorar a capacidade de raciocinar logicamente. Jogos
lúdicos de base matemática e estratégica, como o xadrez, podem
contar pontos se a questão é manter o raciocínio em dia. “Quando
se joga xadrez, você está em um sistema formal (um sistema formal é
um conjunto de axiomas. No caso do jogo de xadrez, você está
respeitando os axiomas do jogo, que são as regras) e a partir delas
se começa o jogo”, diz Silvestrini. E não só isso: para o
professor Marcelo Coniglio, “jogos como sudoku,
go
e bridge,
bem como palavras
cruzadas,
alguns tipos de videogames (como os que organizam blocos como o
Tetris),
uma leitura, música ou filme que nos fazem pensar são excelentes
exercícios para a nossa mente” e também para o raciocínio
lógico. Para ele, é a forma com que esses exercícios nos
surpreendem e rompem com o que consideramos óbvio que aprimoram a
nossa capacidade de ver múltiplas possibilidades a partir de um
mesmo evento ou problema, e vão bem além do conhecimento da
Matemática.
[Contato:
macolins@gmail.com]
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