Ato
de fé ou conquista do conhecimento?
Um
episódio na vida de Joãozinho da Maré
(Artigo
organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da
Rede Estadual de Ensino do Maranhão)
O Joãozinho de
nossa história é um moleque muito pobre que mora numa favela sobre
palafitas espetadas em um vasto mangue. Nosso Joãozinho só vai à
escola quando sabe que vai ser distribuída a merenda, uma das poucas
razões que ele sente para ir à escola. Do fundo da miséria em que
vive, Joãozinho pode ver bem próximo algumas das conquistas de
nossa civilização em vias de desenvolvimento (para alguns). Dali de
sua favela, ele pode ver bem de perto uma das grandes Universidades
onde se cultiva a inteligência e se conquista o conhecimento.
Naturalmente, esse conhecimento e a ciência ali cultivados nada têm
a ver com o Joãozinho e outros milhares de Joãozinhos pelo Brasil
afora.
Além de
perambular por toda a cidade, Joãozinho, de sua favela, pode ver o
aeroporto internacional do Rio de Janeiro. Isso certamente é o que
mais fascina os olhos de Joãozinho. Aqueles grandes pássaros de
metal sobem imponentes com um ruído de rachar os céus. Joãozinho,
com seu olhar curioso, acompanha aqueles pássaros de metal até que,
diminuindo, eles desapareçam no céu.
Talvez, por
frequentar pouco a escola, por gostar de observar os aviões e o
mundo que o rodeia, Joãozinho seja um sobrevivente de nosso sistema
educacional. Joãozinho não perdeu aquela curiosidade de todas as
crianças; aquela vontade de saber os “comos” e os “porquês”,
especialmente em relação às coisas da natureza; a curiosidade e o
gosto de saber que se vão extinguindo, em geral, com a frequência à
escola. Não há curiosidade que aguente aquela “decoreba” sobre
o corpo humano, por exemplo.
Sabendo por seus
colegas que nesse dia haveria merenda, Joãozinho resolve ir à
escola. Nesse dia, sua professora se dispunha a dar uma aula de
ciências, coisa que Joãozinho gostava. A professora havia dito que
nesse dia iria falar sobre coisas como o Sol, a Terra e seus
movimentos, verão, inverno etc.
A professora
começa por explicar que o verão é o tempo do calor, o inverno é o
tempo do frio, a primavera é o tempo das flores e o outono é o
tempo em que as folhas ficam amarelas e caem.
Em sua favela, no
Rio de Janeiro, Joãozinho conhece calor e tempo de mais calor ainda,
um verdadeiro sufoco, às vezes.
As flores da
primavera e as folhas amarelas que caem ficam por conta de acreditar.
Num clima tropical e quente como o do Rio de Janeiro, Joãozinho não
viu nenhum tempo de flores. As flores por aqui existem ou não, quase
que independentemente da época do ano, em enterros e casamentos, que
passam pela Avenida Brasil, próxima à sua favela.
Joãozinho,
observador e curioso, resolve perguntar porque acontecem ou devem
acontecer tais coisas. A professora se dispõe a dar a explicação.
– Eu já disse
a vocês numa aula anterior que a Terra é uma grande bola e que essa
bola está rodando sobre si mesma. É sua rotação que provoca os
dias e as noites. Acontece que, enquanto a Terra está girando, ela
também está fazendo uma grande volta ao redor do Sol. Essa volta se
faz em um ano. O caminho é uma órbita alongada chamada elipse. Além
dessa curva ser, assim, alongada e achatada, o Sol não está no
centro. Isso quer dizer que, em seu movimento, a Terra às vezes
passa perto, às vezes passa longe do Sol. Quando passa perto do Sol
é mais quente: é VERÃO. Quando passa mais longe do Sol recebe
menos calor: é INVERNO.
Os olhos de
Joãozinho brilhavam de curiosidades diante de um assunto novo e tão
interessante.
– Professora, a
senhora não disse antes que a Terra é uma bola e que está girando
enquanto faz a volta ao redor do Sol?
– Sim, eu
disse. – respondeu a professora com segurança.
– Mas, se a
Terra é uma bola e está girando todo dia perto do Sol, não deve
ser verão em toda a Terra?
– É,
Joãozinho, é isso mesmo.
– Então é
mesmo verão em todo lugar e inverno em todo lugar, ao mesmo tempo,
professora?
– Acho que é,
Joãozinho, vamos mudar de assunto.
A essa altura, a
professora já não se sentia tão segura do que havia dito. A
insistência, natural para o Joãozinho, já começava a provocar uma
certa insegurança na professora.
– Mas,
professora, – insiste o garoto – enquanto a gente está ensaiando
a escola de samba, na época do Natal, a gente sente o maior calor,
não é mesmo?
– É mesmo,
Joãozinho.
– Então nesse
tempo é verão aqui?
– É,
Joãozinho.
–
E o Papai Noel no meio da neve com roupas de frio e botas? A gente vê
nas vitrinas até as árvores de Natal com algodão. Não é para
imitar a neve? (A 40o
no Rio).
– É,
Joãozinho, na terra do Papai Noel faz frio.
– Então, na
terra do Papai Noel, no Natal, faz frio?
– Faz,
Joãozinho.
– Mas então
tem frio e calor ao mesmo tempo? Quer dizer que existe verão e
inverno ao mesmo tempo?
– É,
Joãozinho, mas vamos mudar de assunto. Você já está atrapalhando
a aula e eu tenho um programa a cumprir.
Mas Joãozinho
ainda não havia sido domado pela escola. Ele ainda não havia
perdido o hábito e a iniciativa de fazer perguntas e querer entender
as coisas. Por isso, apesar do jeito visivelmente contrariado da
professora, ele insiste.
– Professora,
como é que pode ser verão e inverno ao mesmo tempo, em lugares
diferentes, se a Terra, que é uma bola, deve estar perto ou longe do
Sol? Uma das duas coisas não está errada?
– Como você se
atreve, Joãozinho, a dizer que a sua professora está errada? Quem
andou pondo essas ideias em sua cabeça?
– Ninguém,
não, professora. Eu só tava pensando. Se tem verão e inverno ao
mesmo tempo, então isso não pode acontecer porque a Terra tá perto
ou tá longe do Sol. Não é mesmo, professora?
A professora, já
irritada com a insistência atrevida do menino, assume uma postura de
autoridade científica e pontifica:
– Está nos
livros que a Terra descreve uma curva que se chama elipse ao redor do
Sol, que este ocupa um dos focos e, portanto, ela se aproxima e se
afasta do Sol. Logo, deve ser por isso que existe verão e inverno.
Sem dar conta da
irritação da professora, nosso Joãozinho lembra-se de sua
experiência diária e acrescenta:
– Professora, a
melhor coisa que a gente tem aqui na favela é poder ver avião o dia
inteiro.
– E daí,
Joãozinho? O que tem a ver isso com o verão e o inverno?
– Sabe,
professora, eu acho que tem. A gente sabe que um avião tá chegando
perto quando ele vai ficando maior. Quando ele vai ficando pequeno, é
porque ele tá ficando mais longe.
– E o que tem
isso a ver com a órbita da Terra, Joãozinho?
– É que eu
achei que se a Terra chegasse mais perto do Sol, a gente devia ver
ele maior. Quando a Terra estivesse mais longe do Sol, ele deveria
aparecer menor. Não é, professora?
– E daí,
menino?
– A gente vê o
Sol sempre do mesmo tamanho. Isso não quer dizer que ele tá sempre
na mesma distância? Então verão e inverno não acontecem por causa
da distância.
– Como você se
atreve a contradizer sua professora? Quem anda pondo “minhocas”
na sua cabeça? Faz quinze anos que eu sou professora. É a primeira
vez que alguém quer mostrar que a professora está errada.
A essa altura, já
a classe se havia tumultuado. Um grupo de outros garotos já havia
percebido a lógica arrasadora do que Joãozinho dissera. Alguns
continuaram indiferentes. A maioria achou mais prudente ficar do lado
da “autoridade”. Outros aproveitaram a confusão para aumentá-la.
A professora havia perdido o controle da classe e já não conseguia
reprimir a bagunça nem com ameaças de castigo e de dar “zero”
para os mais rebeldes.
Em meio àquela
confusão tocou o sinal para o fim da aula, salvando a professora de
um caso maior. Não houve aparentemente nenhuma definição de
vencedores e vencidos nesse confronto.
Indo para casa, a
professora, ainda agitada e contrariada, lembrava-se do Joãozinho
que lhe estragara a aula e também o dia. Além de pôr em dúvida o
que ela ensinara, Joãozinho dera um mau “exemplo”. Joãozinho,
com seus argumentos ingênuos, mas lógicos, despertara muitos para o
seu lado.
– Imagine se a
moda pega... – pensa a professora. – O pior é que não me
ocorreu qualquer argumento que pudesse enfrentar o questionamento do
garoto.
– Mas foi assim
que me ensinaram. É assim que eu também ensino – pensa a
professora. – Faz tantos anos que eu dou essa aula, sobre esse
assunto...
À noite, já
mais calma, a professora pensa com os seus botões:
– Os argumentos
do Joãozinho foram tão claros e ingênuos... Se o inverno e o verão
fossem provocados pelo maior ou menor afastamento da Terra em relação
ao Sol, deveria ser inverno ou verão em toda a Terra. Eu sempre
soube que enquanto é inverno em um hemisfério, é verão no outro.
Então tem mesmo razão o Joãozinho. Não pode ser essa a causa do
calor ou frio na Terra. Também é absolutamente claro e lógico que
se a Terra se aproxima e se afasta do Sol, este deveria mudar de
tamanho aparente. Deveria ser maior quando mais próximo e menor
quando mais distante.
– Como eu não
havia pensado nisso antes? Como posso ter “aprendido” coisas tão
evidentemente erradas? Como nunca me ocorreu, sequer, alguma dúvida
sobre isso? Como posso eu estar durante tantos anos “ensinando”
uma coisa que eu julgava ciência, e que, de repente, pode ser
totalmente demolida pelo raciocínio ingênuo de um garoto, sem
nenhum outro conhecimento científico?
Remoendo essas
ideias, a professora se põe a pensar em tantas outras coisas que
poderiam ser tão falsas e inconsistentes como as “causas” para o
verão e o inverno.
– Haverá
sempre um Joãozinho para levantar dúvidas? Por que tantas outras
crianças aceitaram sem resistência o que eu disse? Por que apenas o
Joãozinho resistiu e não “engoliu”? No caso do verão e do
inverno a inconsistência foi facilmente verificada. Se “engolimos”
coisas tão evidentemente erradas, devemos estar “engolindo”
coisas mais erradas, mais sérias e menos evidentes. Podemos estar
tão habituados a repetir as mesmas coisas que já nem nos damos
conta de que muitas delas podem ter sido simplesmente acreditadas;
muitas podem ser simples “atos de fé” ou crendice que nós
passamos adiante como verdades científicas ou históricas.
Atos de fé em
nome da ciência
É evidente que
não pretendemos nem podemos provar tudo aquilo que dizemos ou tudo o
que nos dizem. No entanto, o episódio do Joãozinho levantara um
problema sério para a professora.
Talvez a maioria
dos alunos já esteja “domada” pela escola. Sem perceberem,
professores podem estar fazendo exatamente o contrário do que pensam
ou desejam fazer. Talvez o papel da escola tenha muito a ver com a
nossa passividade e com os problemas do nosso dia-a-dia.
Todas as crianças
têm uma nata curiosidade para saber os “comos” e os “porquês”
das coisas, especialmente da natureza. À medida que a escola vai
ensinando, o gosto e a curiosidade vão se extinguindo, chegando,
frequentemente, à aversão.
Quantas vezes
nossas escolas, não só a de Joãozinho, pensam estar tratando de
Ciência por falar em coisas como átomos, órbitas, núcleos,
elétrons etc. Não são palavras difíceis que conferem à nossa
fala o caráter ou status de coisa científica. Podemos falar das
coisas mais rebuscadas e, sem querer, estamos impingindo a nossos
alunos “atos de fé”, que nada dizem ou não são mais que uma
crendice, como tantas outras. Não é à toa o que se diz da escola:
um lugar onde as cabecinhas entram redondinhas e saem quase todas
“quadradinhas”.
[Contato:
macolins@gmail.com]
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