Por
que a Matemática?
(Artigo
organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da
Rede Estadual de Ensino do Maranhão)
Todo professor já
deve ter tido a experiência de ser questionado por seus alunos sobre
a importância da Matemática e sua utilidade. Eles costumam fazer
perguntas deste tipo:
- Professor, para que serve toda essa Matemática que estamos estudando?
- Por que a gente tem de aprender todas essas coisas sobre triângulos, casos de congruência, semelhança etc. Afinal, de que vai me adiantar tudo isso na vida?
E o professor,
frequentemente, se vê em dificuldades para dar respostas
satisfatórias. Na verdade, perguntas desse tipo nem sempre têm
respostas fáceis ou breves. Então, como responder-lhes? As razões
mais frequentemente mencionadas para justificar o ensino da
Matemática são as seguintes:
- A Matemática é necessária em atividades práticas que envolvem aspectos quantitativos da realidade;
- A Matemática é importante porque desenvolve o raciocínio lógico.
Essas razões,
embora legítimas, não são as mais importantes, nem são tudo o que
justifica o papel da Matemática no ensino. A primeira delas, por
exemplo, é praticamente irrelevante para uma pessoa interessada em
estudos na área de humanidades. De fato, basta um conhecimento
elementar de operações com números para atender razoavelmente bem
as diversas necessidades do dia a dia. Aliás, até ironicamente, o
avanço tecnológico criou uma situação curiosa: hoje em dia o
cidadão necessita de menos Matemática — pelo menos no que diz
respeito a cálculos com números — do que décadas atrás, quando
não dispúnhamos, como hoje, desses instrumentos tão eficazes, que
são as calculadoras.
Como se vê, as
técnicas matemáticas de que necessitamos em nosso cotidiano são
tão modestas que podem ser plenamente atendidas no ensino das
primeiras cinco ou seis séries do Ensino Fundamental. Por que,
então, ensinar Matemática até a última série do Ensino Médio?
Será que a segunda das razões citadas justifica esse ensino? A
nosso ver, ela também é insuficiente, como explicaremos a seguir.
Além do
raciocínio dedutivo
A ideia de que o
pensamento matemático se reduz a seus aspectos lógico-dedutivos —
uma ideia muito difundida, mesmo entre professores de Matemática —
é incompleta e exclui o que há de mais rico nos processos de
invenção e descoberta. O pensamento matemático vai muito além do
raciocínio dedutivo. Em seus aspectos mais criativos, a Matemática
depende da intuição e da imaginação, às vezes até mais que da
dedução. Vamos explicar isso a seguir.
A intuição é a
faculdade mental que permite obter o conhecimento de maneira direta,
sem a intervenção do raciocínio. Os matemáticos frequentemente se
referem a algum fato como “intuitivo”, querendo com isso dizer
que se trata de algo cuja veracidade é facilmente reconhecível. Mas
é bom lembrar que “intuitivo” não é sinônimo de “fácil”.
Há muitas verdades profundas e difíceis que são apreendidas pela
intuição.
A intuição é,
na verdade, uma faculdade mental mais poderosa que o próprio
raciocínio. É por meio dela que ocorrem as grandes criações do
ser humano, nas artes, na filosofia e nas ciências. Essas breves
considerações mostram o quanto de riqueza existe no pensamento
matemático para além de seus aspectos lógico-dedutivos. Imaginação
e intuição são instrumentos tão importantes na invenção
matemática como o são para o pintor que concebe um quadro, para o
escritor que planeja uma obra literária ou para o músico em suas
composições.
As razões
maiores para o ensino da Matemática
O ensino da
Matemática é justificado, em larga medida, pela riqueza dos
diferentes processos de criatividade que ele exibe, proporcionando ao
educando excelentes oportunidades de exercitar e desenvolver suas
faculdades intelectuais.
Mas a razão mais
importante para justificar o ensino da Matemática é o relevante
papel que esta disciplina desempenha na construção de todo o
edifício do conhecimento humano. Desde os primórdios da
civilização, o homem, como “ser pensante”, sempre quis entender
o mundo em que vive. Será que a Terra é plana? Como se suporta?
Como são seus limites últimos? A abóbada celeste é uma fronteira
última com as estrelas nela incrustadas? E o que são essas
estrelas? Por que e como alguns corpos celestes — os planetas —
se deslocam erraticamente? O que existe para além dessa abóbada?
Como explicar os movimentos do Sol e da Lua? A matéria é
indefinidamente divisível ou constituída de “átomos”
indivisíveis? Ou cada tipo de matéria é formado de alguns
elementos básicos, como terra, água, fogo e ar?
Perguntas como
essas certamente atormentaram o espírito humano por muitos milênios,
até que, a partir do século VI a.C., começaram a ser respondidas,
e com muito sucesso. Foram ideias matemáticas simples de semelhanças
de figuras geométricas e proporcionalidade que permitiram aos
astrônomos, já no século III a.C., calcular o tamanho da Terra, os
tamanhos do Sol e da Lua e as distâncias a que se encontram esses
astros da Terra. E a solução desses problemas mudou radicalmente a
ideia do homem a respeito do mundo em que vivia.
As ideias de
Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e Kepler (1571-1630)
sobre o sistema solar, bem como os dados de observação de Tycho
Brahe (1546-1601), culminaram, no século XVII, com a teoria da
gravitação de Newton, que dava ao homem um novo e poderoso
instrumento de compreensão do sistema solar. Os desenvolvimentos que
se seguiram, sobretudo com os trabalhos de Laplace (1749-1827), iriam
resgatar a antiga ideia de Pitágoras (séc. VI a.C.) de que “o
número é a chave para a compreensão dos fenômenos”, pois ficava
agora evidente que os movimentos dos planetas obedeciam a leis
matemáticas precisas. Isso teve influência decisiva no pensamento
racionalista do século XVIII, portanto, nas próprias concepções
filosóficas dessa época. Voltaire (1694-1778), por exemplo, que
passou alguns anos de sua vida na Inglaterra, de lá voltou
entusiasmado com muito do que viu, em particular com a obra de
Newton, da qual foi um grande divulgador entre os franceses.
Ideias sobre a
constituição da matéria ocorreram na antiguidade, sendo bem
conhecidas as de Leucipo e Demócrito, cuja eficácia só pôde ser
comprovada com o desenvolvimento da Química no século XIX. E
novamente aqui o instrumental matemático está na base da solução
dos problemas.
Já no século
XX, e graças a eficazes ideias matemáticas, novamente o homem
alargou as fronteiras do mundo em que vive, calculando distâncias
astronômicas fantásticas e formulando teorias cosmológicas acerca
do mundo em que vivemos.
Mais
recentemente, os avanços da Biologia Molecular, alicerçado em
ideias matemáticas, abrem perspectivas de progressos até há
algumas décadas sequer sonhados sobre os mistérios da vida, sobre a
diversidade das espécies e sobre a engenharia genética.
Até mesmo em
vários domínios da Arte a Matemática tem tido uma influência
substancial e direta, como na Arquitetura, na Escultura, na Pintura e
na Música.
Na Pintura,
particularmente, foi graças a ideias matemáticas de paralelismo e
projeção que os pintores da Renascença criaram a ciência da
Perspectiva, que lhes tornou possível retratar em suas telas uma
realidade marcada por intenso humanismo.
A descoberta de
que Matemática e Música estão intimamente relacionadas remonta a
Pitágoras. Mas foi só no século XVIII que a teoria musical
encontrou bases seguras para se estruturar cientificamente; e aqui,
novamente, foram ideias matemáticas que permitiram uma interpretação
científica dos fenômenos sonoros.
Há um importante
campo de estudos, que é domínio próprio da Matemática, conhecido
como Lógica
e Fundamentos, no
qual foram realizadas, por volta de 1930, notáveis descobertas, que
estabelecem ser inalcançável o objetivo de organizar logicamente a
Matemática, de forma a garantir que todas as suas proposições
possam ser testadas como verdadeiras ou falsas. Em outras palavras, o
edifício matemático, como resultado do trabalho humano, não tem
nem pode ter garantida sua consistência. Isso se reflete em todo o
conhecimento humano, já que a Matemática é, direta ou
indiretamente, instrumento do qual dependem, para sua organização,
as demais ciências, como a Física, a Química, a Biologia, a
Astronomia etc. Em consequência, todo o conhecimento construído
pelo homem está necessariamente marcado pelas limitações de sua
própria intelectualidade. E é esse mesmo conhecimento que revela
essas limitações; vale dizer, o homem descobre as limitações de
seu intelecto, graças ao exercício desse mesmo intelecto!
Esses vários
exemplos mostram o quanto as “ideias matemáticas” têm estado
presentes na construção de todo o edifício do conhecimento,
influindo também, de forma profunda e marcante, nas próprias
concepções filosóficas do homem diante de sua existência e do
mundo em que vive. Por isso mesmo, o ensino da Matemática tem
justificativas mais amplas e abrangentes que apenas aquelas duas
citadas no início deste texto. Podemos assim enunciá-las:
A
Matemática deve ser ensinada nas escolas porque é parte substancial
de todo o patrimônio cognitivo da Humanidade. Se o currículo
escolar deve levar a uma boa formação humanística, então o ensino
da Matemática é indispensável para que essa formação seja
completa.
O ensino da
Matemática se justifica ainda pelos elementos enriquecedores do
pensamento demonstrativo que ela exibe, seja pelo exercício criativo
da intuição, da imaginação e dos raciocínios por indução e
analogia.
O ensino da
Matemática é também importante para dotar o aluno do instrumental
necessário no estudo das outras ciências e capacitá-lo no trato
das atividades práticas que envolvem aspectos quantitativos da
realidade.
É claro que uma
pessoa pode prescindir (isto é, não levar em conta, abrir mão) de
conhecimento matemático e mesmo assim ser um grande ator, escritor,
estadista, enfim, um profissional realizado em muitos domínios do
conhecimento. Mas certamente seus horizontes culturais serão mais
restritos. A situação é análoga à de uma pessoa que, mesmo
possuindo competência matemática, tenha pouco ou quase nada de
conhecimentos humanísticos; seus horizontes culturais também serão
mais limitados.
[Contato:
macolins@gmail.com]
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