O
ensino médio da Matemática
(Artigo
organizado por Marcos Antônio Colins, professor de Matemática da
Rede Estadual de Ensino do Maranhão)
Introdução
O Ensino Médio se
ocupa de jovens cujas idades se situam entre 15 e 17 anos, com
pequenas variações desses números. Trataremos aqui do Ensino Médio
Tradicional, ou usual, em contraste com o profissionalizante. Nos
países onde há uma separação nítida entre diferentes opções
escolares, o tipo de ensino que discutiremos se aproxima mais daquele
que visa ao ingresso na Universidade (como o Gymnasium, na Alemanha).
Noutros países, como o Brasil, o Ensino Médio ao qual nos
referiremos serve a dois tipos de alunos: os que pretendem ingressar
na Universidade e os que têm nele o ponto terminal dos seus estudos
formais, entrando no mercado de trabalho logo após sua conclusão
(ou mesmo enquanto estudantes).
O aluno do Ensino
Médio oferece ao professor de Matemática uma boa oportunidade de
exercer uma ação formadora marcante. Ele está na idade em que deve
decidir sua opção de carreira, por isso tende a assumir atitudes
mais responsáveis. Além disso, possui um desenvolvimento mental em
muitos aspectos comparável ao de um adulto. Tem também um número
reduzido de deformações e maus hábitos de pensamento, que podem
ser corrigidos. E (principalmente para o trabalho em sala de aula) já
aprendeu, ainda que mecanicamente, as técnicas elementares de
operações com números e letras e, pelo menos, a linguagem básica
da Geometria. Esses conhecimentos, ou melhor dizendo, essa
familiaridade com o jargão e com os resultados da Matemática
estudada nos anos anteriores, por mais lacunas que apresente,
implica, para o desenvolvimento do trabalho do professor, numa
considerável economia de tempo e esforço, abrindo caminho para um
programa mais objetivo de estudos.
O conteúdo
matemático do Ensino Médio evoluiu, como é natural, através dos
anos, sofrendo as influências das ênfases dominantes de cada época,
refletindo, por um lado, os vários modismos matemáticos ou
educacionais e, por outro lado, as próprias alterações pelas quais
passou a sociedade. Em particular, essa evolução abrigou alguns
excessos: inicialmente os incontáveis cálculos e manipulações
fastidiosas que predominaram até 40 anos atrás, depois do que veio
a exagerada preocupação com com o formal e o abstrato, tão própria
da chamada Matemática Moderna e, atualmente, o encanto pela
tecnologia, o fascínio pelo computador e a obsessão imediatista, o
pragmatismo dos dias em que vivemos.
Convém observar
que cada um desses perniciosos extremos que acabamos de apontar é
pernicioso por ser extremo, porém, se origina de uma necessidade ou
de uma proposta razoável desde que adotada com moderação. Neste
momento, quando já temos condições de encarar essas variações de
tendências sob uma perspectiva histórica, podemos ter esperança de
alcançar um equilíbrio aceitável quanto à adoção dos pontos de
vista aparentemente antagônicos, cada um deles contendo elementos
válidos.
Isto é o que
pretendemos mostrar aqui.
É desejável, e
certamente possível, fazer com que, ao final dos seus três anos, o
aluno egresso da Escola Média tenha adquirido, mesmo que seja
mediante o estudo de temas elementares, uma ideia bastante clara do
que é a Matemática, dos seus métodos, seu alcance, sua utilidade,
sua relevância social e sua beleza.
Aqueles para os
quais, seja por opção seja por circunstâncias coercitivas, o nível
médio é terminal ficarão em condições de exercer sua cidadania
com mais eficácia, tendo desenvolvido seu espírito crítico de
forma objetiva, tendo adquirido hábitos de organização e cuidado
que os cálculos lhe obrigaram a ter e tendo aprendido a utilizar, em
situações diversas, conhecimentos matemáticos adequados que lhes
permitirão chegar a conclusões e encontrar respostas para problemas
reais.
Aos que se
destinam à Universidade, uma boa educação a nível médio é
extremamente importante e não há necessidade de argumentar sobre
ponto tão óbvio.
A fim de dotar os
alunos, na medida e no ritmo adequados, da noção do que seja o
método matemático, dar-lhes condições e habilidades para lidar
desembaraçadamente com fórmulas e cálculos e preparar-lhes a fim
de mais tarde poderem utilizar com vantagem, em situações que se
lhes apresentarem de fato, o conhecimento adquirido, o ensino da
Matemática deve constituir-se em três componentes básicas, as
quais chamaremos de Conceituação, Manipulação e Aplicações.
Cada tópico
apresentado na sala de aula, cada novo assunto tratado no curso, cada
tema estudado deve ser visto sob esses três aspectos: o conceitual,
o manipulativo e o aplicativo. O professor deve submeter-se ao
desafio de compor esse trio a cada nova etapa do seu trabalho. Nem
sempre vai ser fácil; por isso é um desafio. Às vezes até parece
impossível: não há muitas fontes bibliográficas nas quais se
apoiar. No começo, não se vai sempre poder apresentar cada assunto
sob essa tríplice abordagem. Mas anote a dificuldade e busque, com
diligência e determinação, superá-la mais tarde. Pesquise,
indague, olhe em torno de si, procure exemplos, exerça sua
autocrítica. No decorrer do processo terá muitas alegrias. Cada
êxito é um nutriente para a auto-estima; cada lacuna é uma
motivação para estudos e pesquisas adicionais.
A dosagem
adequada dessas três componentes é o fator de equilíbrio do
processo de aprendizagem. Elas contribuirão para despertar o
interesse dos alunos em aumentar a capacidade que terão no futuro de
empregar, não apenas as técnicas aprendidas nas aulas, mas
sobretudo a capacidade de análise, o espírito crítico, agudo e bem
fundamentado, a clareza das ideias, a disciplina mental que consiste
em raciocinar e agir ordenadamente. É conveniente pensar nas três
componentes como um tripé de sustentação: as três são
suficientes para assegurar a harmonia do ensino e cada uma delas é
necessária para seu bom êxito.
Convém observar
que essas três componentes básicas refletem algumas das diferentes
faces com que a Matemática pode se apresentar.
Algumas vezes a
Matemática é como uma arte: o enlace das proposições, as conexões
entre suas diversas teorias, a elegância e a clareza dos seus
raciocínios, a eloquência singela das suas proposições e a
surpresa de algumas de suas conclusões enlevam o espírito e
acariciam nosso senso estético.
Outras vezes, a
Matemática se mostra como um eficaz instrumento, às vezes simples
em suas aplicações cotidianas, às vezes elaborado e complexo,
quando usado para resolver problemas tecnológicos ou desenvolver
teorias científicas.
E, para tornar
efetiva sua aplicabilidade, ou mesmo para dar destreza na obtenção
de suas conclusões teóricas, a Matemática oferece seu lado
operacional: a manipulação de seus símbolos, tanto numéricos
quanto abstratos.
Digamos algumas
palavras sobre cada uma das componentes básicas do ensino da
Matemática.
Conceituação
A conceituação
compreende vários aspectos, entre os quais destacaremos os
seguintes:
- A formulação correta e objetiva das definições matemáticas.
Isto inclui a
nítida compreensão de que definir significa dar um nome a um
conceito, a uma situação ou a uma condição, substituindo uma
frase por uma palavra ou um pequeno número de palavras, contribuindo
assim para maior clareza do discurso, maior precisão das afirmações,
maior concentração nos pontos essenciais da argumentação e mais
destreza nos raciocínios.
Por exemplo, nos
“Elementos” de Euclides encontramos as seguintes definições:
(a) linha é um comprimento sem largura; (b) ângulo é a figura
formada por duas semi-retas que têm a mesma origem. Faz parte da boa
obediência à componente “Conceituação” deixar claro que (a) é
apenas uma motivação intuitiva e (b) é uma verdadeira definição.
Muitas vezes o
mesmo conceito pode ser definido de maneiras diferentes em forma,
porém, equivalentes em significado. Dependendo das circunstâncias,
uma ou outra forma da definição pode ser a mais conveniente. Nestes
casos, manda a coerência, até mesmo a ética, que o professor ou
autor advirta sua audiência e, sempre que possível, demonstre
explicitamente que se trata apenas de descrever a mesma ideia com
diferentes termos.
Ilustremos este
ponto com dois exemplos.
O primeiro
exemplo se refere à noção de polígono convexo. Trata-se de um
conceito básico de Geometria, que pode ser definido de vários
modos. Às vezes é conveniente dizer que um polígono chama-se
convexo quando está inteiramente contido num dos semi-planos
determinados por qualquer dos seus lados. Outras vezes convém
descrever um polígono convexo como aquele que não contém
ziguezagues, tendo definido antes um ziguezague como três lados
consecutivos AB,
BC
e CD
tais que AB
e CD
estão em semi-planos opostos relativamente à reta BC.
Dizer que um polígono não contém ziguezagues é uma maneira
matematicamente adequada (isto é, precisa) de exprimir que não há
nele ângulos reentrantes. Verificar que um polígono é convexo
segundo esta definição é bem mais fácil do que segundo a
anterior, pois cada lado é comparado apenas com os dois adjacentes a
ele, enquanto que, na primeira definição, para cada lado do
polígono, devemos verificar se todos os demais lados estão no mesmo
semi-plano por ele determinado. Cabe ao professor chamar a atenção
para o fato de que um polígono convexo de acordo com a primeira
definição evidentemente não contém ziguezagues, mas a recíproca
é bem mais difícil de provar. Na maioria das classes é preferível
omitir a demonstração.
O
segundo exemplo refere-se a polinômios. Um polinômio, pensado como
uma função p
:
R →
R, chama-se identicamente nulo quando p(x)
= 0 para todo x
Є
R. Alternativamente, pode-se definir polinômio identicamente nulo
como aquele que tem todos os seus coeficientes iguais a zero.
Novamente temos aqui duas definições equivalentes. É evidente que
todo polinômio identicamente nulo conforme a segunda definição o é
também de cordo com a primeira. A recíproca não é tão óbvia,
mas pode ser provada facilmente, como consequência do fato de que um
polinômio de grau n
não pode ter mais do que n
raízes. Esta propriedade, por sua vez, resulta imediatamente do
chamado “teorema de d'Alembert”, segundo o qual p(α)
= 0 implica p(x)
divisível por x
– α.
Em relação a
este segundo exemplo, há algumas atitudes que devem ser evitadas,
mas que, infelizmente, são mais frequentes do que deviam. Uma delas
consiste em adotar uma das duas definições e usar a outra sem
comentários, como se tivessem o mesmo significado imediato. Outra é
a de admitir que são duas definições equivalentes, porém, omitir
a prova da equivalência, como se fosse algo fácil. Alunos do Ensino
Médio têm plena capacidade de entender que o número de raízes de
um polinômio não pode exceder seu grau e por que isto é verdade.
Finalmente, há autores e professores que tratam os polinômios como
expressões algébricas formais e então o problema desaparece, pois
resta apenas uma definição. Isto significa ignorar que os
polinômios são funções e neste fato reside o motivo pelo qual são
estudados na escola.
- O emprego bem dosado do raciocínio dedutivo, deixando clara a distinção entre o que supõe (hipótese) e o que se quer provar (tese), diferenciando uma proposição de sua recíproca e enfatizando que toda conclusão necessariamente advém de uma premissa.
Aqui cabe
distinguir tão claramente quanto for possível, argumentos
heurísticos de argumentos dedutivos. Muitas vezes, um raciocínio
intuitivo, de natureza concreta, embora impreciso, tem um forte apelo
visual e contribui para despertar o interesse do aluno. Neste caso, é
de bom alvitre apresentá-lo. Um exemplo disso é a obtenção da
fórmula V
= (4/3)πR3
para
o volume da esfera, a partir da sua decomposição aproximada em
pirâmides com vértice no centro da mesma, admitindo-se conhecida a
fórmula S
= 4πR2
para a área. Mas em todas as situações deste tipo, deve-se
enfatizar que não se trata de uma verdadeira demonstração.
- O entendimento e a percepção de que algumas noções e certas proposições podem ser reformuladas ou interpretadas de diferentes formas ou em diferentes termos, reconhecendo assim situações equivalentes ou mesmo idênticas em essência, porém, apresentada de maneiras várias, aparentemente descrevendo casos diversos.
Um exemplo disto
é a compreensão de que as fórmulas de cos(a + b) e sen(a + b) nada
mais são do que a regra operacional óbvia ℮ia
· ℮ib
= ℮i(a
+ b)
escrita sob a forma de igualdades entre as partes reais e as partes
imaginárias de ambos os membros. Ainda nesse mesmo contexto, podemos
mencionar a percepção de que o Teorema de Ptolomeu (segundo
o qual, num quadrilátero inscritível, o produto das diagonais é
igual à soma dos produtos dos lados opostos) implica que sen(a –
b) = sen a ·
cos b – sen b · cos a.
O reconhecimento
de ideias e proposições análogas, porém, apresentadas sob
aspectos e terminologias aparentemente diversos conduz à importante
prática de estabelecer conexões entre os vários temas da
Matemática, fortalecendo a unidade e a coesão dessa disciplina.
Exemplos
de conexão matemática podem ser dados observando que uma progressão
aritmética é a restrição de uma função afim ao conjunto dos
números naturais e, analogamente, uma progressão geométrica é a
restrição ao conjunto Ν de uma função f(x)
= b · ax,
de tipo exponencial. Estas simples observações permitem transformar
analogias em casos particulares e explicar por que tantos problemas
(de Matemática Financeira, por exemplo) podem ser tratados por P.G.
ou pela função exponencial.
Outro exemplo,
lamentavelmente ignorado em nosso Ensino Médio, é a interpretação
geométrica dos sistemas lineares de duas ou três equações com
três incógnitas, ou o significado geométrico do determinante como
volume.
Também ignorado
é o uso do logaritmo para cálculo da área sob uma faixa de
hipérbole, o que mostraria uma bela conexão entre duas teorias
elementares aparentemente bem diferentes.
Os exemplos podem
multiplicar-se, exibindo as vantagens didáticas do hábito de
estabelecer conexões entre diferentes partes da Matemática
Elementar.
A conceituação,
quando levada a extremos, pode colidir com os bons preceitos do
ensino. Um exemplo disso se vê na definição de função como um
conjunto de pares ordenados sujeito a certas condições.
Esta prática,
surgiu com o advento da Matemática Moderna e sua fixação
conjuntista, sem dúvida resulta da preocupação de reduzir todos os
conceitos fundamentais da Matemática à noção única de conjunto
na crença de que isto daria uma organização da Matemática em
bases estritamente rigorosas, isentas de apelos a noções vagas e/ou
intuitivas.
Mas não é bem
assim.
Em primeiro lugar
porque trata de uma definição que, embora logicamente correta, é
bastante elaborada, incompatível com a prática e por isso
rapidamente abandonada por aqueles que a usam.
Em
segundo lugar porque não corresponde à ideia que os matemáticos e
os que utilizam a Matemática fazem de uma função: dados dois
conjuntos A
e B,
uma função de domínio A
e contradomínio B
é uma regra, um conjunto de instruções, uma correspondência, uma
lei que permita associar, sem restrições nem ambiguidade, a cada
elemento x
do conjunto A
um elemento f(x)
do conjunto B.
Entre os exemplos de funções acham-se as transformações
geométricas e as funções trigonométricas. Será que existe alguém
no mundo que pense numa rotação como um conjunto de pares
ordenados? Ou o seno de ângulo?
E
finalmente, para rebater o argumento de que uma regra (ou um conjunto
de instruções ou uma lei) que permita obter f(x)
a partir de x
é uma noção vaga e não-matemática, observemos que, por sua vez,
a fim de definir o conjunto de pares ordenados que determina (ou que
é) uma função, é preciso ter uma regra (um conjunto de instruções
ou uma lei) que diga quando é que um certo par ordenado pertence ou
não ao tal conjunto.
Observemos
ainda que, embora pareça paradoxal, a conceituação é mais
importante para as aplicações do que a manipulação. Isto porque,
a fim de determinar qual o instrumento matemático que deve ser
utilizado na solução de um problema real é necessário ter
presente a definição desse instrumento ou de teoremas de
caracterização da função a ser empregada. Pois as situações
contextuais não vêm acompanhadas de fórmulas. A tarefa de
encontrar o instrumento matemático adequado para traduzir a situação
é o que se chama de modelagem
matemática.
Para esse fim, os teoremas de caracterização são indispensáveis.
Manipulação
Para analisar
corretamente o papel da manipulação, o crítico deve policiar-se
atentamente para não incorrer no erro de menosprezá-la. Durante
séculos, e ainda hoje, a manipulação quase que monopolizou o
ensino da Matemática. A tal ponto que, para a maioria das pessoas (e
até mesmo de professores e autores de livros didáticos) a
Matemática é essencialmente manipulação. Houve, nos anos 60, uma
forte reação contra isso, a qual chegou ao extremo de praticamente
banir os cálculos e exacerbar o abstrato. Hoje prevalece uma posição
mais sensata: a manipulação está para o ensino da Matemática
assim como a prática de escalas musicais está para o aprendizado do
piano ou como o treinamento dos chamados “fundamentos” está para
a prática de certos esportes como o tênis ou o voleibol.
A fluência no
manuseio de equações, fórmulas e operações com símbolos e
números, o desenvolvimento de atitudes mentais automáticas diante
de cálculos algébricos ou construções geométricas, a criação
de uma série de reflexos condicionados sadios em Matemática, os
quais são adquiridos através da prática continuada de exercícios
manipulativos bem escolhidos, permite que o aluno (mais tarde, o
usuário da Matemática) concentre sua atenção consciente nos
pontos realmente essenciais, salvando seu tempo e sua energia de
serem desperdiçados com detalhes secundários.
A esse respeito,
convém ressaltar o importante papel das calculadoras eletrônicas,
não apenas como doadoras de tempo, energia e atenção ao aluno,
nem somente como anjo da guarda da proteção contra os erros de
cálculo, mas até mesmo como grande auxiliar da conceituação,
permitindo que certos temas matemáticos, como logaritmos, por
exemplo, sejam estudados pelo que realmente significam e não como
mero instrumento de cálculo aritmético. Ao destruir o emprego
calculatório do logaritmo, a calculadora o colocou numa posição
mais nobre.
Aplicações
É verdade que a
Matemática é bela; que seu cultivo é uma das mais elevadas
expressões da intelectualidade humana; que os problemas por ela
propostos constituem desafios cuja solução fortalece a auto-estima,
sublima o espírito e recompensa nobremente o esforço. Tudo isto é
verdade, mas não é somente por isso que a Matemática é estudada
na escola, em toda a parte. Não é apenas por isso que a Matemática
é considerada cada dia mais imprescindível para a formação
cultural e técnica do homem moderno.
A Matemática é
indispensável por tudo isso e, mais particularmente, porque serve ao
homem. Porque tem aplicações. Porque permite responder, de modo
claro, preciso e indiscutível, perguntas que, sem o auxílio dela,
continuariam sendo perguntas ou se transformariam em palpites,
opiniões ou conjecturas.
As aplicações
são a parte ancilar da Matemática. São a conexão entre a
abstração e a realidade. Para um grande número de alunos, são o
lado mais atraente das aulas, o despertador que os acorda, o estímulo
que os incita a pensar.
O professor deve
considerar como parte integrante e essencial de sua tarefa o desafio,
a preocupação de encontrar aplicações interessantes para a
Matemática que está apresentando. Como dissemos acima, nem sempre
isso é fácil. Mas vale a pena indagar, pesquisar, pensar, incomodar
os colegas, vasculhar livros.
Um procedimento
que certamente desperta a atenção dos alunos é abrir cada novo
tema com um problema que necessita dos conhecimentos que vão ali ser
estudados a fim de ser resolvido. De preferência (e isto ocorre
naturalmente quando é proposto no início do capítulo) um problema
cujo objeto principal não é o assunto a tratar naquele capítulo.
Um exemplo evidente é dado por um problema cuja resolução requer
Trigonometria, mas senos, cossenos ou tangentes nao ocorrem no
enunciado. Ou problemas que se resolvem com logaritmos, mas a palavra
“logaritmo” não é mencionada neles.
A fim de resolver
problemas desta natureza é muitas vezes necessário ter em mente a
caracterização das funções matemáticas a serem utilizadas, as
definições matemáticas dos conceitos aplicáveis (conceituação)
e, depois de formuladas as equações ou inequações pertinentes,
saber lidar operacionalmente com elas e efetuar com eficiência os
cálculos necessários (manipulação). Isso ilustra a
interdependência das três componentes básicas.
Mas é preciso
ter presente dois preceitos básicos.
O primeiro é:
nem tudo aquilo cujo uso excessivo condenamos deve ser banido. Por
exemplo, a linguagem, a notação e as regras básicas para o
manuseio de conjuntos são uma valiosa e permanente conquista
matemática, indispensável para a clareza, a precisão e a
generalidade do raciocínio. Não esqueçamos as palavras de Hilbert:
“Ninguém nos expulsará do paraíso que Cantor nos legou”. Ao
criticar a chamada “conjuntivite” que predominou na época da
Matemática Moderna, não cometamos o erro de proibir em nossos
textos e em nossas aulas a simples menção de conjuntos e o uso da
conveniente linguagem que lhe corresponde.
O segundo
preceito consiste em não privilegiar excessivamente os temas e a
abordagem que consideramos (e que são) relevantes, em prejuízo do
equilíbrio das três componentes básicas do ensino. Por exemplo,
nota-se hoje em dia uma grande e, até certo ponto, muito justa
preocupação com a chamada “contextualização”, que significa
prover o ensino da Matemática de situações reais, concernentes a
problemas que de fato ocorrem, ou podem vir a ocorrer, nos dias
atuais; problemas onde as ferramentas matemáticas vêm a ser de
utilidade decisiva. Este ponto de vista é válido; inclusive estamos
defendendo-o aqui.
Mas não devemos
perder de vista o verdadeiro significado da Matemática, cujo método
consiste em formular conceitos e teorias gerais que se aplicam em
inúmeras situações, às vezes aparentemente diversas. Não importa
quantos problemas contextuais resolvamos mediante técnicas ad hoc,
não estaremos utilizando toda a força da Matemática se não
estivermos olhando para esses problemas como situações especiais de
um conceito, de uma teoria matemática que nos permitirá resolvê-los
e resolver muitos outros problemas, nem sempre obviamente análogos.
Um exemplo:
funções do tipo exponencial
As
funções exponenciais, f(x)
= ax,
ou do tipo exponencial, f(x)
= b · ax,
são estudadas na Escola Média. Vejamos como deveria ser sua
abordagem segundo o modelo aqui proposto.
O problema de
abertura poderia ser o seguinte:
“A bula do
antibiótico que meu médico prescreveu diz que, 24 horas após a
primeira dose, a concentração plasmática da substância ativa
reduz-se a 10% da concentração máxima. (Por simplicidade,
admitamos que se tratava de uma injeção, logo o nível máximo da
droga no sangue foi atingido imediatamente.) A receita médica
estipulava doses iguais a cada 12 horas. Que fração da dose inicial
ainda permanecia em meu organismo na ocasião da segunda dose?”
É
claro que, posto no início das aulas sobre função exponencial, os
alunos já sabem que função matemática vão usar para resolver o
problema. Não há como evitar isso. O importante é que eles saibam
justificar por que vai ser usada uma função do tipo f(x)
= b · ax.
Deste
modo, em outras situações saberão fazer uma opção consciente.
O ponto crucial
em problemas de modelagem como este é o teorema de caracterização
da função que vai ser utilizada.
É
óbvio que se temos uma função do tipo f(x)
= b · ax,
o valor f(x)
é proporcional a b (valor inicial: b
= f (0)).
Um pouquinho menos (mas ainda) óbvio é que, fixado t,
o valor f(x
+ t) = b · ax+t
= (b · ax)
· at
= at
·
f(x)
é proporcional a f(x).
Noutras
palavras, para todo t,
o quociente f(x
+ t)/f(x) = at
não depende de x.
Ou seja, f(x
+ t) = a(t) · f(x),
onde o coeficiente a(t)
é o mesmo, seja qual for x.
O importante é
que vale a recíproca. Ela constitui o Teorema de Caracterização
das funções de tipo exponencial:
Teorema:
Seja
f : R →
R+
uma função monótona tal que, para qualquer t Є R o quociente f(x
+ t)/f(x) não depende de x. Então f é do tipo exponencial: f(x) =
b · ax.
Este
teorema é um caso típico da componente conceitual. Vejamos se ele
se aplica ao exemplo inicial sobre o antibiótico. Aqui se trata de
verificar se uma determinada situação real cumpre certas condições.
Num dado instante x,
mede-se a concentração plasmática, acha-se o resultado f(x).
Após o tempo t,
mede-se outra vez e constata-se que ela se reduziu a α
· f(x),
com 0
< α < 1.
É razoável admitir que, em qualquer outro instante x',
no qual a concentração plasmática é f(x'),
passado o mesmo
tempo t,
tenha-se f(x'
+ t) = α · f(x')?
A resposta afirmativa caracteriza uma certa permanência, ou
estabilidade, do processo de eliminação da substância no organismo
(via suor, urina etc) e, pelo teorema acima, assegura que f(x)
= b · ax
para certos a
e b.
Meçamos
o tempo x
em horas. Evidentemente, b
= f(0).
Sabemos que f(24)
= b/10,
ou seja, b
· a24
= b/10,
donde a24
= 1/10 = 0,1. A pergunta é qual o valor de f(12)/f(0).
Temos:
f(12)
/ f(0)
= (b
·
a12)/b
= a12
= √(a24)
= √0,1
= 0,316.
A resposta é:
após 12 horas, a concentração plasmática no organismo reduziu-se
de 31,6% do nível máximo (inicial).
A parte final do
problema é manipulativa. O problema, em si, é uma aplicação. As
três componentes se complementam.
[Contato:
macolins@gmail.com]
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